O que interessa a uma parte da opinião pública não é a espiritualidade católica, mas a disputa por seu capital simbólico
Por Marcos Lopes
Passado o luto pela morte do papa Francisco e a eleição de Leão XIV, cabe um balanço da discussão sobre a religião no momento atual, tendo ao fundo o ruído dos eventos e à frente um silêncio sobre o futuro do catolicismo.
As dúvidas acerca dos resultados do Conclave surgiram com a escolha do nome pontifício. Para um comentarista com gosto esportivo, a tática leonina sinalizaria uma derrota do plantel progressista. Isso porque o último papa com esse nome, Leão XIII (1810-1903), teria sido um anticomunista, posicionando-se contra os movimentos do proletariado e a favor da burguesia industrial. A escolha do colégio cardinalício indicaria a inclinação conservadora do novo papa. Enquanto isso, suas primeiras manifestações públicas eram consideradas anódinas por um teólogo da libertação.
Por outro lado, parte dos conservadores via, na eleição do cardeal Prevost, a continuidade do legado de Francisco, não hesitando em rotulá-lo de marxista. Uma outra ala, surpresa com a escolha dos cardeais, manifestava um “voto de confiança” no resultado do conclave. Para esse grupo, a Igreja seria um parlamento e Leão XIV seu primeiro-ministro.
Os rótulos atribuídos ao escolhido são suficientes para explicar a tradição católica? E por que uma parte da opinião pública que não se identifica com ela, e mesmo a rejeita, se preocupa com uma religião que dá sinais de exaustão, enquanto assiste à ascensão dos evangélicos? Por que importaria, senão para os católicos, saber o que pensa o novo papa sobre ecologia, gênero, racismo, etc.? Tais discussões revelam mais sobre as crenças da modernidade do que sobre a relevância do catolicismo e suas possíveis contradições.
Alguns dirão que a Igreja não é um condomínio fechado, cabendo-lhe responder não só por seus quase 2 bilhões de seguidores, como também pelos efeitos de suas manifestações entre os incrédulos e os adeptos de outras religiões. Num mundo que oscila entre a crença ruidosa na transcendência, isto é, que confunde louvor com gritos, como se Deus fosse uma entidade com dificuldades auditivas, e a militância semiculta, incapaz de compreender uma tradição milenar, o que a Igreja Católica ainda tem a oferecer? Há um clamor pela atualização de seus dogmas e costumes para que ela se pareça mais com o mundo secular. Para cumprir um determinado ideal de justiça social, muitos insatisfeitos, que não são membros da Igreja e tampouco acreditam nela, exigem-lhe reformas estruturais.
No fundo, projetam-se em Leão XIV nossos ressentimentos e esperanças. O que interessa a uma parte da opinião pública não é a espiritualidade católica, mas a disputa por seu capital simbólico, com o objetivo de alinhá-lo a agendas seculares. A religião tornou-se uma arena tanto para os que desejam preservar o status quo quanto para as pessoas ávidas por mudanças radicais.
Estamos longe dos esforços intelectuais presentes no debate entre Jürgen Habermas e o cardeal Joseph Ratzinger (depois papa Bento XVI), ocorrido em 2004, quando se discutiram os fundamentos morais do Estado democrático. A discordância não os impediu de consentirem que é possível, na modernidade, um diálogo entre fé e razão. Já na conferência “Fé e Saber” (2001), Habermas admitia que a religião detinha uma “reserva semântica” para um diagnóstico crítico do tempo presente. Com essa expressão, ele argumentava que os conteúdos da fé cristã, por exemplo, ainda contribuiriam para se pensar o mundo contemporâneo.
Na conferência, Habermas abordava o acontecimento decisivo que foi o 11 de setembro de 2001 (o ataque às Torres Gêmeas, em Nova York) recusando-se a vê-lo apenas como expressão do atraso tecnológico e do comportamento fanático de um grupo de terroristas. Ao contrário das manifestações atuais, que operam com a dicotomia “conservador e progressista”, o filósofo alemão pensava fé, política e razão da perspectiva de uma tensão dialética: termos que não constituiriam uma antítese irreconciliável, mas que estabeleceriam uma relação complexa.
As cartas trocadas entre o filósofo Umberto Eco e o cardeal Carlo Maria Martini, publicadas ao longo de 1995 na revista italiana Liberal, também confrontaram os valores seculares e cristãos. Nesse diálogo epistolar, foram apresentados aos leitores os principais desafios éticos do Ocidente. A frase provocativa do cardeal Martini (“A Igreja não satisfaz expectativas, celebra mistérios”), a propósito do papel da mulher no catolicismo, era uma confissão e, sobretudo, o reconhecimento da finalidade da instituição religiosa.
Ao simplificarmos o debate acerca da religião, considerando a eleição de Leão XIV o resultado de uma disputa entre conservadores e progressistas, corre-se o risco de não entender o verdadeiro papel da fé nas sociedades laicas. Mas o perigo maior é reduzir as representações do sagrado à medida das nossas paixões morais, bloqueando com isso tanto a discussão democrática como, sobretudo, a compreensão das possibilidades e limites da tolerância religiosa.
Opinião por Marcos Lopes
Professor de Literatura Geral e Comparada na Unicamp, é coordenador do Centro de Estudos de Literatura, Teorias do Fenômeno Religioso e Artes Fonte: https://www.estadao.com.br




