Em ‘Apocalipse nos Trópicos’, Petra Costa investiga ligação entre a política e evangélicos no Brasil

Depois de ‘Democracia em Vertigem’, indicado ao Oscar, a cineasta transita entre Brasília e cultos para tentar entender o significado do crescimento da bancada evangélica e das ‘orações políticas’ proferidas Brasil afora

 

'Apocalipse dos Trópicos', de Petra Costa, explora o crescimento da fé evangélica no Brasil. Foto: Divulgação/Netflix

 

Por Beatriz Amendola

Enquanto filmava os vaivéns do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff para seu Democracia em Vertigem (2019), documentário que lhe renderia uma indicação ao OscarPetra Costa recebeu uma dica de uma assessora parlamentar: filmar um ato profético convocado pelo pastor Silas Malafaia. A cineasta seguiu o conselho e escutou uma mulher proferir uma declaração inflamada que chamou sua atenção: “Deus deve tomar o executivo, o legislativo e o judiciário, e expulsar a escória desse País”.

O momento está registrado em Apocalipse nos Trópicos, novo filme da diretora, que agora se propõe a examinar a intersecção entre a política e as lideranças evangélicas no Brasil. “Essa declaração me marcou muito – eu acho que ela até me incluía na escória que deveria ser expulsa do País”, relembra Petra, em conversa com o Estadão. “E que país seria esse em que Deus toma o executivo, o legislativo e o judiciário? Eu nunca tinha ouvido uma uma uma oração tão política”.

A cineasta transita entre Brasília e cultos para tentar entender o significado do crescimento da bancada evangélica e das ‘orações políticas’ proferidas Brasil. Crédito: Netflix via Youtube

Apocalipse nos Trópicos, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 3, e à Netflix no próximo dia 14, retrata outros discursos similares. Logo no começo, Petra aparece em cena recebendo uma Bíblia das mãos de Cabo Daciolo (Republicanos), que diz que “Deus decretou o fim do governo do ímpio” e fala em uma “guerra espiritual”.

A retórica belicosa, Petra viria a descobrir, está diretamente ligada ao livro bíblico do Apocalipse, que empresta seu nome ao filme. Mais especificamente, a uma de suas interpretações, propagada pelo pastor John Nelson Darby no século 19. Nesta versão, que serviu de base para o fundamentalismo cristão, a segunda vinda de Cristo é iminente, e será precedida por eventos cataclísmicos – e quanto pior forem estes eventos, mais rápido virá o arrebatamento.

Foi um discurso com o qual a cineasta se deparou com frequência enquanto filmava em igrejas evangélicas durante o período da pandemia de covid-19. “As músicas eram sobre Apocalipse, os cultos falavam do Apocalipse e associavam a pandemia ao Apocalipse, como um sinal dos cinco tempos”, recorda. “E um dos pastores que aparece no filme também fala muito disso, sobre como ele estava feliz de o governo Bolsonaro estar criando uma situação de caos que aceleraria o fim do mundo e, portanto, a volta de Jesus.”

Ela acrescenta: “Isso era uma uma teologia muito presente entre os evangélicos fundamentalistas no Brasil e muito presente entre evangélicos fundamentalistas nos Estados Unidos. Os aliados dominionistas do [presidente norte-americano Donald] Trump acreditam piamente nisso de que acelerar o fim do mundo vai acelerar a volta de Jesus.”

 

A influência de Malafaia

O dominionismo à que Petra se refere, também conhecido como teologia do domínio, prega que os cristãos devem buscar o controle sobre vários aspectos da sociedade, como a política e a cultura. É um conceito que, em Apocalipse nos Trópicos, é explicado por Silas Malafaia, que acaba por se tornar um dos personagens centrais da narrativa.

O pastor não só é entrevistado, como é acompanhado pelas câmeras de Petra em momentos diversos, do púlpito a uma reunião com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A decisão de incluí-lo veio após a produtora do longa, Alessandra Orofino, constatar que ele estava presente, indiretamente, em grande parte do material que Petra havia gravado em igrejas durante a pandemia.

“Olhando esse material, o Silas estava em tudo”, lembra Alessandra. “Vários pastores o referenciavam quando falavam das suas estratégias de como manter as igrejas abertas e o porquê. Os vídeos que ele fazia viralizavam, e as pessoas que a gente estava entrevistando referenciavam esses vídeos. Então, o Silas estava presente sem a gente o tivesse entrevistado.”

O timing também ajudou, já que Malafaia se tornou uma figura ainda mais proeminente na vida pública nos quatro anos em que o documentário foi filmado. “A influência dele sobre Bolsonaro aumentou tremendamente”, diz Petra. “Os outros aliados caíram, alguns morreram, como o Olavo de Carvalho, e o Silas virou um conselheiro do presidente. E até hoje está organizando manifestações.”

 

E a esquerda?

O conflito entre os líderes evangélicos, historicamente alinhados à direita, e a esquerda também se faz presente em Apocalipse nos Trópicos. Há, no filme, menções virulentas de Malafaia aos “esquerdopatas”, e o deputado Sóstenes Cavalcante (PL) atribui, também no documentário, justamente à oposição o crescimento da bancada evangélica no Congresso Nacional. Mas o momento mais notável é quando o presidente Lula (PT) diz ter a tese de que o socialismo falhou ao negar a religião.

“É claro que existe uma necessidade de se reconhecer que, no Brasil, a fé é parte da vida das pessoas e ela não vai deixar de ser – e nem necessariamente é desejável que ela deixe de ser”, diz Alessandra. “A fé cumpre muitas funções importantes na vida de muita gente, inclusive na minha, diga-se passagem. Mas o filme não pretende dar lição de moral nem apontar os erros,”

As realizadoras esperam que o longa possa suscitar reflexões na esquerda. “Em alguma medida”, prossegue Alessandra, “alguns segmentos da esquerda se acomodam a um papel de gestores desse capitalismo tardio, de tentar minimizar as dores e os problemas, mas sem buscar soluções mais inventivas, mais criativas e que questionem mais as bases dos problemas que a gente vive, em vez de só gerenciar as consequências mais negativas.”

Remetendo a outro momento do filme, que pontua o “fervor revolucionário” presente na direita e, especialmente, nas lideranças evangélicas, Petra complementa: “Quem é que está falando ‘vamos organizar todo mundo, vamos sair na manifestação, vamos pressionar o Congresso, vamos eleger tantos deputados, vamos encher a Suprema Corte’? Quem está convocando suas bases hoje em dia? A esquerda, como diz o Gilberto Carvalho em Democracia em Vertigem, deixou de convocar suas bases”. Fonte: https://www.estadao.com.br