Dominação funciona melhor quando não chamamos dominação de dominação
Até hoje a mulher é tratada como território a ser controlado, dominado, delimitado
Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'
As pessoas morrem de doenças, acidentes, desgosto, tiros e de causas naturais. Além das causas que atingem todos, as mulheres morrem também por outra "causa natural": ser mulher. Não é um "mal genético", é um mal da engenharia social.
O que está explodindo nas notícias não são eventos pontuais, não são picos de um gráfico, é uma constante. O roteiro se repete diariamente. Ameaça, grito, humilhação, estupro, espancamento, esfolamento, enforcamento e, muitas vezes, o fim.
O que assusta é que os assassinos não são monstros, são "pessoas comuns". Trabalham, têm família, circulam na rua, sentam ao nosso lado no trabalho e, com frequência assustadora, moram dentro de casa.
O feminicídio é último degrau de uma escada de violências contra a mulher. Quase nunca começa no soco, no tiro, na faca, no fogo. Começa no tom. No "cala a boca", no "você tá exagerando", no "ninguém diz não para mim", no "ela me provocou". Quando essa engrenagem de poder e controle se repete dentro de casa, o filho aprende, o vizinho aprende, o bairro aprende, a cidade aprende, a sociedade aprende, até a mulher aprende.
A brutalidade é tamanha que, às vezes, o homem só não mata porque a mulher não morreu. A violência parece ter ficado mais violenta. Ou talvez já fosse assim, a diferença é que agora há câmeras, há vídeo, há redes, há vozes femininas. Ficamos indignadas com as cenas e seguimos com medo dos próximos capítulos dessa série de horror sem fim. O horror não está só no ato, está também na normalidade.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu ajuda a entender a dinâmica através do que ele chama de violência simbólica. Ela não precisa quebrar ossos para quebrar pessoas, porque opera por linguagem, por gestos, por aquilo que vai sendo aceito como "as coisas são assim" e, assim, prepara o terreno para a agressão concreta.
A violência simbólica é esperta: suave, paciente, sutil e, por isso, especialmente eficaz. Ela entra pelas frestas, contamina o ambiente e vira o que os filósofos chamam de "doxa", uma crença sedimentada que ninguém mais questiona. A partir daí, a subordinação passa a se reproduzir sozinha, e o intolerável vira rotina e socialmente aceito.
Até hoje a mulher é tratada como território –a ser controlado, dominado, delimitado. Bourdieu diria: a dominação funciona melhor quando a gente não chama dominação de dominação. Quando chama de "dinâmica do casal". Quando chama de "gênio forte". Quando chama de "ciúme". Quando chama de "crime passional".
Não se trata, portanto, apenas de violência física, trata-se da materialização de um discurso ancestral. Há mais de vinte séculos, Aristóteles já definia a mulher como um "homem incompleto", e a história cuida de adequar essa ideia ao seu tempo.
Cada feminicídio é um lembrete brutal de que falhamos, resultado de uma cadeia de omissões sociais e falhas institucionais. Só leis, por mais rigorosas que sejam, não são suficientes.
A violência simbólica se instala como ar. E quando vira ar, todo mundo respira sem notar. Até que falte ar. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br




