Festejada como exemplo de linha dura, a ação policial mais letal da história, segundo relatório do próprio Estado, falhou em quase tudo e, para piorar, há poucas imagens de câmeras da PM

 

A Operação Contenção, realizada no fim do mês passado nos Complexos da Penha e do Alemão, no Rio, tornou-se um marco para o debate nacional sobre o modelo de segurança pública que o Brasil precisa adotar para enfrentar as organizações criminosas. Se ganhou essa importância, o ideal seria que a mais letal intervenção policial já registrada no País fosse devidamente escrutinada pela sociedade e pelas instituições de controle, como sói acontecer em qualquer democracia constitucional madura.

Mas, não obstante a gravidade da operação – que culminou em 121 mortos, entre eles quatro policiais –, o governador Cláudio Castro (PL) falhou miseravelmente em assegurar as condições mínimas para que as ações dos policiais civis e militares sob seu comando pudessem ser devidamente apuradas, sobretudo pelo Ministério Público, instituição incumbida pela Constituição de exercer o controle externo da atividade policial.

O Relatório Técnico-Probatório enviado pelo governo fluminense ao Supremo Tribunal Federal (STF), por ordem do ministro Alexandre de Moraes no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, expõe falhas absolutamente inaceitáveis à luz da dimensão daquela operação. Embora Castro classifique a Operação Contenção como um “divisor de águas” no combate às facções criminosas em seu Estado, o próprio relatório entregue por ele ao STF desmonta o discurso oficial. A Secretaria de Segurança Pública do Rio atualizou os números de prisões e apreensões, demonstrando que muitos dos mandados judiciais que originalmente embasaram a operação deixaram de ser cumpridos. Para piorar, a pasta foi incapaz de fornecer o elemento mais básico de qualquer operação policial moderna: o registro audiovisual por meio de câmeras corporais instaladas no fardamento dos agentes.

Dos cerca de 2.500 policiais mobilizados, só uma pequena parte portava câmeras. E, desse contingente já pífio, somente metade dos equipamentos registraram imagens. O restante, segundo o governo fluminense, apresentou falhas técnicas ou teve as baterias descarregadas. É uma explicação que zomba da inteligência alheia. Não há como justificar que um dos maiores Estados do País conduza uma operação policial daquele porte providenciando um número tão minguado de câmeras e, ademais, em prever baterias extras a fim de garantir o pleno funcionamento dos aparelhos. Não se pode condenar quem veja esse erro crasso de planejamento como uma ação deliberada para inviabilizar a reconstrução dos fatos e a identificação de eventuais ilegalidades cometidas pelas forças policiais.

Quando não se sabe exatamente o que aconteceu durante os confrontos, abre-se espaço para a desconfiança na polícia – e isso é péssimo para o Estado de Direito. A ausência das imagens torna-se ainda mais grave diante dos relatos de que corpos teriam sido removidos e manipulados antes da realização de perícia. Em qualquer parte do mundo civilizado, esse tipo de comprometimento da chamada cadeia de custódia seria suficiente para anular a credibilidade de toda a operação. No Brasil, onde o uso de câmeras corporais já foi reconhecido pelo próprio STF como mecanismo indispensável à atividade policial, até para resguardo dos próprios agentes, isso soa como afronta ao Estado de Direito.

A discussão sobre segurança pública, contudo, não se encerra nos eventuais erros da Operação Contenção. A escalada de poder de facções como PCC e Comando Vermelho, que se tornaram, na prática, organizações de caráter mafioso, exige uma abordagem nacional capaz de coordenar políticas públicas, fortalecer investigações e impor limites claros ao uso da força letal.

Se a Operação Contenção se converteu no ponto de partida para essa inflexão tão necessária, torna-se ainda mais imperativo que ela seja analisada com absoluta transparência e rigor. Não há dúvida de que o combate às facções criminosas frequentemente exige confronto. Mas o que diferencia policiais e bandidos é o compromisso inegociável com a legalidade. A sociedade brasileira, exausta tanto da violência cotidiana quanto da omissão histórica do poder público, não clama por vingança, mas por ordem, húmus da paz social. E ordem só se constrói com operações policiais circunscritas aos limites da Constituição. Fonte: https://www.estadao.com.br