Em 'Ninguém Morre Sozinho', Renata Piza não poupa ninguém, nem a si mesma

Livro nos leva a percorrer com a viúva caminhos de dor e culpa, mas também uma grande história de amor

 

 

Livro "Ninguém morre sozinho", de Renata Piza - Arquivo

 

Tatiana Eskenazi

"A vida muda em um instante. Um instante comum." Assim, Joan Didion inicia "O Ano do Pensamento Mágico", relato sobre os meses que se seguiram à morte súbita do marido, John Gregory Dunne, em 30 de dezembro de 2003.

"No dia em que eu morri, lavei roupa no tanque." É com essa frase desconcertante que Renata Piza abre "Ninguém Morre Sozinho" (Editora Gema), em que narra os anos posteriores à morte do marido, o jornalista Daniel Piza. Assim como Dunne, ele também morreu em um 30 de dezembro, oito anos depois.

A coincidência de datas, mais do que uma curiosidade biográfica, revela o ponto de partida comum das duas obras: a impossibilidade de compreender o que acontece quando a morte irrompe na vida em meio aos gestos banais do dia a dia e, com um desastre súbito, desorganiza tudo o que parecia organizado.

Renata ficou viúva muito mais jovem que Didion e talvez dispusesse, à época, de menos ferramentas para enfrentar a viuvez precoce. Ela escreve a partir de uma juventude ferida e de sonhos interrompidos. Didion, por sua vez, perdeu o companheiro de uma vida inteira enquanto vivia o desespero de ver a filha única internada, lutando contra uma infecção generalizada que, dois anos depois, a levaria também.

Apesar das diferenças, é interessante notar os sentimentos comuns a essas duas mulheres — e, provavelmente, a tantas que vivem a viuvez repentina. Não à toa, Renata cita a célebre reflexão de Didion sobre "a questão da autopiedade". Ambas se debatem com o mesmo dilema: como seguir em frente sem transformar a dor em identidade, reconhecendo, ao mesmo tempo, que sucumbir a tudo isso também faz parte do próprio processo de luto.

Historicamente, a viuvez sempre foi mais dura para as mulheres. As cobranças, o machismo, a invisibilidade, a solidão — tudo isso compõe o abismo diante do qual uma mulher pode se ver ao enfrentar a perda, especialmente com filhos pequenos: "...estava sozinha, com duas crianças pra criar. As pessoas se dissiparam, seguiram suas vidas."

Em "Ninguém Morre Sozinho", Renata expõe esse abismo sem filtros. É admirável e comovente o modo como ela lança luz sobre tudo o que há de feio, contraditório e humano num processo de luto.

A Renata do Daniel morre com ele, mas segue vagando, num limbo de dor, dívidas e depressão. "Comecei a me sentir um estorvo, a viúva que ninguém queria encarar. Com medo de que ela pedisse alguma coisa." Percorremos com ela um caminho de raiva, culpa, vergonha e solidão. Uma sequência de vórtices, como bem descreve também Didion, que a tragavam sucessivamente ao centro da perda.

Mas percorremos também, através de seus relatos e das cartas de Daniel, uma grande história de amor. Um amor cuja memória a conduz pela mão, até que a Renata do Daniel também seja enterrada, para que outra possa nascer. "Eu tive o maior amor do mundo durante dez anos da vida, e ele será imortal enquanto eu estiver viva. O luto, entendi, agora também faz parte de mim."

O ano de 2012 de Renata "começou com um enterro errado, na hora errada, no dia errado". O ano do pensamento mágico de Didion começou também com essa sensação de engano de que, a qualquer momento, Dunne voltaria. É a isso que a escritora chama de pensamento mágico: aquele ao qual nos agarramos, que nos mantém de pé, por mais irreal que seja.

Na lógica irracional e profundamente humana do luto, da tentativa de negociar com o impossível, por vezes, acabamos não reconhecendo a nós mesmos. O luto não obedece à razão.

Renata Piza escreve um livro corajoso, sincero, que não romantiza nem suaviza o luto e o que dele emerge. Ao final, diz: "Minha maior sorte, talvez a única, não é amar ou ter sido tão amada…É levantar, mesmo trêmula, mesmo cega, mesmo fazendo uma quantidade vexatória de burradas e recomeçar."

Talvez o luto seja sobre isso —aprender, no limite da perda, a seguir em frente apesar de tudo, até mesmo de si. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br