Percebi que prolongar a tristeza era uma forma de me manter perto da mãe que eu perdi tão cedo. O luto raramente é linear; giramos em falso, capturados por um rodamoinho de melancolia

 

Todo luto carrega em si uma ambivalência pungente: na ausência concreta de quem amamos, carregamos a presença da dor de lembrar e a angústia de esquecer. Dói lembrar como as segundas-feiras eram acolhedoras começando a semana com jantar e colo de mãe; os conselhos da amiga querida, que davam contorno à nossa vida errante; o cafuné do amor que, com a ponta dos dedos, apaziguava os milhões de pensamentos que hoje, sem ele e sem cafuné, invadem nossas noites.

Mas também dói esquecer: a voz do pai que era razão e perdão ou o aniversário daquele amor que juramos eterno e que a vida interrompeu, levando o companheiro antes do tempo. Como se perder lembranças fosse perdê-los de novo. Como se cada esquecimento confirmasse que a vida segue —mas esvaziada.

Todo mundo que já perdeu alguém importante se sentiu assim: meio desencaixado do mundo, querendo seguir, mas convocado emocionalmente a ficar: com o vazio, com as memórias, com as saudades que nos revisitam sem aviso. Apesar de falarem nas cinco fases do luto, ele raramente é linear. Giramos em falso, capturados por um rodamoinho de melancolia que, de tempos em tempos, nos puxa de volta a esse não lugar. De repente, não mais que de repente, o luto volta como ondas que, por vezes, nos afogam em desesperança, tristeza, solidão —ainda que saibamos que há muita vida, e muitos vivos, nos convidando a seguir.

Finados, que chega no domingo (2), pode ser uma dessas marés que voltam, trazendo um oceano de saudades. Há também o Natal, o aniversário ou o simples tocar da música que era "a de vocês". Eu, que fui atravessada pelo luto muito cedo —perdi minha mãe aos cinco— sei como é difícil se ver às voltas com essa sensação de "será que não vai passar nunca?". Dá medo de transformar a dor em muleta psíquica, em barreira pro mundo, em casulo de identidade. Mas também dá raiva quando o mundo, e nós mesmos, nos cobra seguir em frente, como se fosse possível "superar" a ausência de quem amamos.

bell hooks dizia que o luto prolongado incomoda uma cultura que quer curar rápido. Somos ensinados a sentir vergonha da dor que insiste, como se ela fosse fracasso. Nessa lógica corremos o risco de interpretar mal o convite da psicanálise: Freud dizia que o trabalho do luto consiste em libertar o amor do objeto perdido, para que a vida possa seguir. Seguir, porém, não é esquecer, é ressignificar. Não se trata de deixar de doer, mas de descobrir nossos próprios recursos para acolher a dor e honrar o que fica de quem não fica.

No meu processo analítico, percebi que prolongar a tristeza era, inconscientemente, uma forma de me manter perto da mãe cuja ausência se impôs mais do que a presença. Como se ficar na dor fosse honrar o amor vivido e reviver o vínculo na falta. Vejo o mesmo em viúvos: uma interdição à felicidade, como se ser feliz de novo fosse trair quem já não está.

Com o tempo, entendi que sou também a vida da minha mãe que segue e o reflexo do colo da minha tia Célia, que se foi há um ano. Criei rituais para mantê-las por perto. Da minha mãe fiz uma colcha de retalhos de memórias, costurada com lembranças emprestadas de meu pai e tios. Descobri que "Bennie and The Jets" era sua música e a coloco para tocar quando quero senti-la perto. Se meu coração aperta, adoço o dia com marzipã —seu doce favorito, que hoje é também o meu. Da minha tia, herdei a coragem de nomear sentimentos e aceitar a errância do sentir. Hoje, a cada escuta, afeto e palavra que compartilho com um analisando ou amor, algo dela se transmite em silêncio através de mim. E quando o silêncio dói, mando mensagens de áudio e escuto sua voz de novo. Ritualizar o amor continuamente é uma forma bonita de cuidar da ausência, criando pequenos portais de afeto que se tornam portos seguros.

Permita-se ir devagar. Não espere estar bem para voltar a se abrir. Leve a dor para passear —não para escondê-la, mas para entender que você respira também através dela. Sim, haverá um furo para sempre. Cuide dele com delicadeza. Nada será como antes, mas não precisa ser esvaziado; pode ser apenas diferente. A força está em acolher a dor e permitir que ela conviva com outras emoções.

Talvez o luto te acompanhe sempre, mas não mais como o fim de uma vida, e sim como a forma do amor permanecer. Ele só muda de forma, e é nesse permanecer que a existência se refaz.

E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui

Amor Crônico

*Escrita por Carol Tilkian, psicanalista, pesquisadora de relacionamentos e palestrante. Fundadora do podcast e do canal Amores Possíveis e professora da Casa do Saber. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br