Em nome da ‘modernização regulatória’, eufemismo para centralização estatal, modelo que fez da internet nacional uma referência de liberdade e governança democrática está ameaçado

 

Em sua origem, a internet se apresentou como a tradução digital da própria ideia de democracia. Sua arquitetura aberta e descentralizada nasceu do princípio de que nenhum centro de poder deve controlar o fluxo das ideias. Cada nó tem voz, cada usuário, autonomia, e cada inovação pode surgir de baixo para cima. Essa engenharia da liberdade transformou a rede em espaço global de criação e participação – um espelho virtual dos valores democráticos.

Hoje esse modelo está sitiado. Em nome da “soberania digital”, governos e reguladores erguem muros no ciberespaço. A China exporta sua doutrina de “cibersoberania”, eufemismo para censura e vigilância. A Europa multiplica regulações que inibem a inovação. Os EUA oscilam entre liberdade e nacionalismo tecnológico. O resultado é uma internet fragmentada em arquipélagos digitais. Já o Brasil sempre foi uma ilha de excelência – até agora.

Desde 1995, o País construiu um modelo de governança multissetorial – o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) – que se tornou referência mundial. Nele, governo, academia, empresas e sociedade civil compartilham decisões técnicas e políticas. Dessa experiência nasceram instituições de excelência – NIC.br, Registro.br, IX.br, Cert.br, Cetic.br – que garantem a estabilidade e a segurança da rede. Em 2014, o Marco Civil da Internet consagrou essa filosofia em três pilares: liberdade de expressão, neutralidade de rede e privacidade.

Mas esse modelo está sob ameaça. Nos últimos três anos, a Anatel vem ampliando seu poder sobre o ecossistema digital. A pretexto de realizar uma “modernização regulatória”, a agência revogou a norma 4, que há décadas distinguia os serviços de telecomunicações – sob sua jurisdição – dos serviços de valor adicionado, como a internet. Essa separação foi o alicerce de uma rede livre da lógica centralizadora das telecomunicações. Ao apagá-la, a Anatel abriu caminho para reivindicar controle sobre infraestrutura e serviços fora de seu escopo: pontos de troca de tráfego, domínios, provedores de nuvem.

O movimento culminou no Projeto de Lei 4.557/24, que propõe subordinar à burocracia estatal da Anatel o CGI.br, e com ele a governança de uma rede construída sobre pluralismo e cooperação. A Internet Society advertiu que o projeto mina o modelo que fez do Brasil referência mundial. Como alerta Konstantinos Komaitis, ex-diretor da organização, em artigo em seu blog (www.komaitis.org), trata-se de um “golpe silencioso”, uma tentativa de submeter a rede brasileira à lógica burocrática e centralizadora do Estado.

O modelo brasileiro não apenas funciona: ele inspira confiança. Romper a separação entre telecomunicações e internet é entregar um sistema descentralizado à hierarquia estatal – trocar a colaboração pela autorização, a liberdade pela licença. Submeter a internet à estrutura de uma autarquia é minar o princípio de sua resiliência: o do poder compartilhado, nunca concentrado.

A ofensiva ocorre num ambiente já inclinado ao controle. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Supremo Tribunal Federal têm ampliado a intervenção do Estado sobre o debate digital. Entre decretos abusivos e decisões judiciais expansivas, o País corre o risco de substituir a pluralidade pela tutela. O que se anuncia, no discurso de “regulação das redes”, é uma burocratização da liberdade movida pelo apetite de fazer do espaço digital mais um instrumento de poder político.

A internet brasileira prosperou porque foi livre. O CGI.br mostrou que é possível combinar inovação e responsabilidade sem sufocar o debate nem subordinar a técnica à política. Essa é a essência da soberania aberta: participar do mundo sem se fechar ao mundo. A alternativa – isolamento regulatório e captura institucional – é seguir o caminho dos que confundem proteção com controle e soberania com obediência.

O Brasil tem diante de si uma escolha. Pode preservar a arquitetura da liberdade que o tornou exemplo global, ou transformar-se em mais um elo da corrente que aprisiona a rede sob um Estado tutelar. Defender o CGI.br é defender a democracia digital – e a real. Porque a internet, em última instância, não é uma infraestrutura: é uma ideia. E essa ideia é liberdade. Fonte: https://www.estadao.com.br