Tramitação às pressas de um projeto meritório expõe o risco de uma dupla infâmia: negligenciar as reais causas da exploração infantil e usar essa exploração para controlar o debate público
O Projeto de Lei de Proteção de Crianças e Adolescentes no Ambiente Digital (2.628/22) foi aprovado pela Câmara sob um clima de comoção pública. O impacto do vídeo viral do influenciador Felca, que revelou redes de exploração sexual de crianças nas plataformas digitais, foi instantâneo: dezenas de projetos apresentados em questão de dias, regime de urgência aprovado na surdina e um texto votado às pressas, em menos de 24 horas, sob pressão de um presidente da Câmara que buscava desviar a atenção de sua fragilidade política e de um governo que buscava contrabandear instrumentos de controle do debate público. A boa intenção – proteger crianças e adolescentes – foi tomada de assalto pelo pânico moral e um oportunismo político que quase resultou em mecanismos draconianos de censura.
A redação final melhorou consideravelmente em relação à versão inicial, que permitia que qualquer usuário forçasse a remoção imediata de conteúdos, um convite à guerra de denúncias e à censura privada. O texto aprovado restringiu essa faculdade à vítima, seus representantes, ao Ministério Público e a entidades de defesa da infância. Da mesma forma, retirou do Executivo o poder de suspender redes por ato administrativo, remetendo tal competência ao Judiciário – como exige o devido processo legal.
Ainda assim, o projeto mantém riscos. O artigo que obriga a evitar “uso compulsivo” até aponta para uma regulação pertinente, mas recorre a um conceito vago, de aplicação incerta. A autoridade nacional responsável por regular, fiscalizar e aplicar sanções saiu da ingerência direta do Executivo e recebeu autonomia. Mas o risco de que essa estrutura, sob governos de diferentes matizes, seja capturada e instrumentalizada para perseguir adversários ou sufocar opiniões incômodas não foi completamente afastado.
O mérito do projeto reside em medidas de proteção efetiva: mais transparência, reforço ao controle parental, obrigação de configurações protetivas por padrão e restrição da coleta de dados de menores e à publicidade manipuladora ou a práticas viciantes em jogos. São avanços que dialogam com experiências internacionais. Mas faltou diligência para enfrentar com mais esmero arquiteturas algorítmicas que exploram vulnerabilidades psicológicas de adolescentes, estimulando adição, ansiedade e depressão.
As denúncias de Felca foram instrumentalizadas para demonizar indiscriminadamente as big techs, mas o seu real mérito foi demonstrar a omissão da polícia, do Ministério Público e do Judiciário, que falharam em aplicar leis já existentes contra pedófilos e exploradores. Os que focam na ideia de que as plataformas devem atuar como polícia punitiva premiam a ineficiência estatal e arriscam sacrificar a liberdade de expressão de milhões de brasileiros. Não se protege a integridade física e moral dos jovens apenas com sanções digitais, mas sobretudo com fiscalização, investigação criminal e o fortalecimento da família, sempre o primeiro guardião das crianças.
O açodamento com que a Câmara tramitou o projeto é sintoma de um vício recorrente: legislar ao sabor da comoção. Felizmente, os piores excessos foram mitigados, mas a essência ainda pode ser mais equilibrada. Agora, que o texto retornou ao Senado, é preciso preservar os avanços reais, eliminar dispositivos que abram caminho para a censura e preencher lacunas relativas ao desenho das plataformas. Do contrário, a boa intenção de proteger crianças corre o risco de se converter em mais um capítulo de populismo legislativo, insegurança jurídica, paternalismo inócuo e oportunidades desperdiçadas para uma regulação inteligente.
O equilíbrio entre liberdade de expressão e segurança nas redes é delicado. Quando se trata de adultos, a liberdade deve ser sempre a regra, e as restrições, absolutamente excepcionais, justificadas e detalhadas. Em relação a crianças e adolescentes, a relação, se não chega a ser inversa, é diversa. Melhor pecar por excesso. Mas ainda melhor é não pecar. A pressa é não só amiga da imperfeição, mas do arbítrio. Após a tramitação performática – e temerária – da Câmara, cabe ao Senado deliberar com prudência. Fonte: https://www.estadao.com.br




