Desnutrição já matou mais de 100 pessoas no enclave desde o início da guerra, sendo 80 delas crianças, e número não para de subir
Por O GLOBO, com agências internacionais — Cidade de Gaza
Com vozes fracas, corpos exaustos e estômagos vazios, palestinos relatam um colapso humanitário sem precedentes na Faixa de Gaza. A fome já matou mais de 100 pessoas desde o início da guerra, em outubro de 2023 — sendo 80 delas crianças —, e o número não para de subir. Nos últimos dois dias, ao menos 33 palestinos, incluindo 12 menores, morreram por desnutrição, segundo o Ministério da Saúde do território, controlado pelo grupo terrorista Hamas.
A escassez de alimentos, água potável e medicamentos afeta todos os setores da sociedade. Médicos, enfermeiros, jornalistas e trabalhadores humanitários enfrentam a mesma fome de quem tentam socorrer. Nesta terça-feira, o chefe da Agência das Nações Unidas para Refugiados Palestinos (UNRWA), Philippe Lazzarini, denunciou que membros da agência da ONU estão desmaiando em serviço devido à exaustão e à desnutrição.
— Não nos restam forças por causa da fome — resume o fotógrafo Omar al-Qattaa, de 35 anos, indicado ao Prêmio Pulitzer.
Entre os que ainda tentam manter a cobertura da guerra, há quem precise interromper o trabalho para buscar comida ou aliviar dores com analgésicos improvisados, já que os remédios sumiram das farmácias.
— Já não conseguimos chegar aos locais sobre os quais devemos reportar — confessa Qattaa, que trabalha para a agência de notícias AFP.
A jornalista da AFP Ahlam Afana, de 30 anos, destaca outra dificuldade: uma exaustiva "crise de dinheiro vivo", causada pelas exorbitantes comissões bancárias e pela inflação. Comissões bancárias que superam os 40% tornam quase impossível utilizar transferências de parentes no exterior.
— O que sobra não dá nem para comprar um quilo de farinha, que agora custa US$ 80 [cerca de R$ 445] — diz Mohammad Mahmoud, pai de quatro filhos. — Não comemos nada, exceto um pouco de lentilhas, há dois dias. Misturamos um pouco de sal de cozinha em um copo d'água e bebemos, só para obter alguns eletrólitos.
'Fome mata mais rápido que doença'
Saba Nahed Alnajjar, de 19 anos, sonhava estudar Medicina na Argélia, mas perdeu a bolsa quando a guerra estourou. Vivendo em uma tenda com a família na região costeira de al-Mawasi, ela agora teme morrer sem realizar seus sonhos.
— Estamos vivos, mas não há o que comer — disse ela, que pesa hoje apenas 35 quilos, à BBC. — Não há comida nem remédios. Nos tornamos esqueletos. Não há proteção. Gaza se tornou inabitável. Eu quero sair deste inferno. Não consigo suportar isso.
A dor dos profissionais de saúde é ainda mais aguda. Randa, enfermeira oncológica de 38 anos que trabalha no Hospital Nasser, em Khan Younis, resume o colapso:
“A fome está nos matando mais rápido que a doença”, disse ela por mensagem de texto à BBC.
Sem medicamentos nem alimentos, os pacientes recebem quimioterapia com corpos já debilitados pela desnutrição, relata Randa.
— O que mais ouço dos pacientes não é "estou com dor", mas "estou com fome" — afirma. — Tentamos tudo o que podemos, mas temos muito pouco a oferecer. Nós os vemos desaparecer... e carregamos esse desgosto conosco todos os dias.
Ela própria deixa seus quatro filhos chorando em uma tenda quando sai para trabalhar.
— Nós, as equipes médicas, estamos tendo colapsos de exaustão e fome. Ficamos de pé por horas intermináveis sem sequer uma refeição. Muitos de nós desmaiam, mas nosso dever não nos permite ir embora. Não podemos dar as costas aos pacientes, mesmo quando nosso próprio corpo está em colapso — diz Randa. — Esta é a minha vida cotidiana. Uma mãe com filhos famintos. Uma enfermeira cercada por mulheres que estão morrendo. Um ser humano preso em um lugar que o mundo parece ter esquecido.
No Hospital al-Shifa, o maior da Faixa de Gaza, Osama Tawfiq, um funcionário veterano do setor de suprimentos, diz nunca ter presenciado algo semelhante em 20 anos de serviço.
— Crianças estão morrendo de fome dentro do hospital. Não há comida para os pacientes. Eu vou trabalhar com fome e deixo meus seis filhos também com fome — afirmou.
A crise se estende às novas gerações. Na Cidade de Gaza, a jovem mãe Noura Hijazi viu sua filha de 20 meses, Aisha, perder dois quilos em apenas quatro dias.
— Ela parou de falar, de se mover. Pede comida, mas não tenho o que dar — relatou a um jornalista freelancer da BBC no local.
Hijazi perdeu o companheiro na guerra e vive em uma tenda com os dois filhos.
— Você espera o dia inteiro na esperança de conseguir algo para comer, mas não consegue nada. Você bebe um copo de água com sal para poder passar o dia — ela diz, e faz um apelo: — Pedimos a eles que parem a guerra, que considerem essas crianças que não fizeram nada de errado.
'Grito de sobrevivência'
O som de crianças chorando de fome ecoa pelas tendas.
— Ontem, não consegui dormir por causa do som de uma criança chorando na barraca vizinha. Chorava de fome. Seus pais não conseguiam encontrar nada para alimentá-lo ou acalmá-lo — disse à BBC a farmacêutica Suha Shaath, que perdeu 10 quilos desde o início da guerra. — A fome tortura os pais com a impotência e as crianças com o choque de ver que os adultos não podem salvá-las.
A distribuição de ajuda humanitária tem sido ineficaz, frequentemente interrompida ou alvo de ataques. Desde 27 de maio, após um bloqueio humanitário total de mais de dois meses imposto por Israel, a pouca ajuda que entra na Faixa de Gaza é distribuída pela controversa Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês), uma organização apoiada por Estados Unidos e Israel, mas criticada por organizações internacionais de ajuda e pelas Nações Unidas.
— As pessoas sabem que os pontos de distribuição são armadilhas mortais, mas vão mesmo assim, porque não têm nada para dar aos filhos — diz Ghada Al-Haddad, funcionária do escritório de comunicações da Oxfam, uma confederação de organizações humanitárias, em Deir al-Balah, à BBC.
Segundo a ONU, mais de mil palestinos foram mortos por tiros enquanto tentavam obter alimentos desde o fim de maio. Israel mantém o território sitiado e permite a entrada de ajuda apenas em quantidades limitadas, alegando que o Hamas desvia os suprimentos. Mas denúncias de civis e de agências internacionais apontam para bombardeios e ataques diretos a filas de distribuição. Em junho, a ONU declarou que o uso da fome como arma de guerra configura crime de guerra.
Há vários meses, a ONU também vem advertindo sobre os riscos de fome no território palestino, onde mais de 2 milhões de pessoas enfrentam condições humanitárias críticas. De acordo com o Programa Mundial de Alimentos (PMA), quase um terço da população de Gaza, está passando vários dias sem comida, e 470 mil pessoas devem enfrentar os níveis mais severos de fome até setembro deste ano.
Na segunda-feira, um grupo de 28 países — incluindo Reino Unido, Canadá, França e Japão — pediu em comunicado conjunto o fim da guerra e disse que “o sofrimento dos civis em Gaza atingiu novos níveis”. Nesta terça, o secretário do Exterior britânico, David Lammy, se disse “horrorizado e enojado” com as imagens de Gaza. Já a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que as imagens de palestinos morrendo enquanto tentam buscar comida são “insuportáveis”.
Para muitos, a fome superou o medo das bombas.
— Prefiro a morte a esta vida — diz Zuheir Abu Atileh, de 60 anos, ex-colaborador do escritório da AFP em Gaza. — Não nos restam forças, estamos esgotados, estamos desmoronando. Basta.
Em Deir al-Balah, no centro do território, onde o Exército israelense lançou nesta semana uma ofensiva terrestre, o fotojornalista Eyad Baba, de 47 anos, deixou um campo de refugiados superlotado e insalubre para alugar um abrigo a um preço exorbitante, a fim de proteger sua família.
— A dor da fome é mais forte que o medo dos bombardeios — explica Baba. — A fome impede de pensar. Fonte: https://oglobo.globo.com




