Poze do Rodo, Bandeira e Ben Jor na encruzilhada
Criminalizar o funkeiro que canta na comunidade é, em verdade, criminalizar a própria comunidade
Por Alcir Moreno da Cruz
“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que vejo é o beco” (Manuel Bandeira, 1933)
Quando o beco geográfico encontra o beco simbólico, a arte é acossada e cantar torna-se um ato de desobediência. Não há céu nesse beco, há sirenes. Não há horizonte, há muro. Quando um cantor é algemado por aquilo que canta, não se prende um homem: acorrenta-se uma coletividade.
A notícia de mais uma prisão – de um artista, de um funkeiro – repete o roteiro conhecido. Não há flagrante de delito, não há resistência, não há sequer perigo. Mas há o espetáculo da contenção, o teatro da vergonha, o cortejo da humilhação pública. É quando o Estado, em nome da ordem, arma o palco da submissão. Algemam-no não porque precise ser contido, mas porque precisa ser exposto. Reduzem-no a uma caricatura perigosa, quando o que ele representa é apenas a liberdade – incômoda, insuportável para alguns – de cantar sobre o mundo que o cerca.
Criminalizar o funkeiro que canta na comunidade é, em verdade, criminalizar a própria comunidade – e, com ela, toda a forma de celebração que ali se realiza. Porque não há festa na favela que não seja permeada por sua realidade: seus personagens, suas contradições, sua música, sua topografia, suas mazelas. A arte, nesse espaço de abandono, é sobrevida. É denúncia, é alegria. “O morro que era um céu, sem o nosso Charles, um inferno virou”, disse Ben Jor em Charles, Anjo 45. O problema nunca foi a letra ou o ritmo. O problema é quem segura o microfone e ousa erguer a própria voz.
Há algo de profundamente simbólico em conduzir, sob o brilho frio das algemas, um cantor sem resistência, sem receio fundado de fuga ou de perigo à integridade física. Um gesto teatral mais destinado às câmeras do que à Justiça, em flagrante ofensa à Súmula Vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal (STF). E que ignora o que já foi reconhecido há muito tempo: a força das algemas não reside na sua utilidade física, mas na violência simbólica que carregam, pois quando não há risco há apenas humilhação. Os grilhões, nesse contexto, não seguram um braço, tentam aprisionar um imaginário: você não pertence, você ousou. “Você fez o jogo virar.” “Você saiu do lugar, está em outro patamar.” Para eles, o palco; para você, o banco dos réus. Para eles, o sucesso; para você, a suspeita. Para eles, a licença poética, o eu lírico; para você, o enquadro. Para eles, os atos heroicos e lendários; para você, o lugar reservado a um fora da lei.
A censura à arte que nasce das periferias sempre foi seletiva. Porque não se trata apenas de conteúdo: trata-se de classe. Trata-se de raça. A música de elite pode erotizar, provocar, insultar – e será chamada de vanguarda. A música da favela faz o mesmo – e é classificada como apologia. Não se perdoa a voz que emerge de onde só se esperava silêncio.
Liberdade artística não é favor do Estado – é direito constitucional. Direito que protege inclusive aquilo que incomoda, que provoca, que fere sensibilidades acomodadas, que apresenta a realidade cinicamente encoberta. Quando ceifada, impede o florescimento da democracia. Não há liberdade de expressão apenas para o belo e para o aceito. A verdadeira liberdade protege o incômodo. A licença poética. O personagem. O som que desafia. A letra que fere porque aponta feridas, pois o artista tem mais liberdade que o cidadão comum, não menos. Porque sua função é expandir, e não se limitar. Como advertiu Foucault em Vigiar e Punir: “O controle social é mantido pela criminalização de atos e pensamentos não conformistas”. A tentativa de reduzir esse artista a um criminoso comum, jogado no porão de uma viatura da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) direto à “colônia penal” – enquanto nada mais fez senão cantar –, é um gesto que beira a repetição histórica da senzala. Não é retórica. É diagnóstico.
Querem transportá-lo de volta ao lugar da servidão. Desumanizá-lo, hostilizá-lo em seu próprio lar sob os olhos vivos, espichados e atemorizados dos que o cercam. Há um desconforto com o sucesso de quem, para muitos, deveria fracassar. Um inconformismo com o riso, com a ostentação e com o júbilo. Um incômodo diante da imagem de um jovem negro, milionário, de cabelo abacaxi, egresso do sistema prisional, ouvido e seguido por multidões – e, acima de tudo, altivo.
Censura é sempre política. E, quando atinge a arte popular, a arte periférica, a arte negra, ela revela seu rosto mais cruel: o de um país que ainda não se perdoou por ser mestiço, por ser pobre, por ser plural.
Mas o que vejo é apenas o beco. O beco que canta, que dança, que desafia. O beco onde a arte não morre porque é feita de sobreviventes. E quem sobrevive canta. Mesmo que algemem. Mesmo que tentem silenciar. Mesmo que o queiram de volta ao lugar de onde desejariam que jamais tivesse saído: do beco. “Mas Deus é justo, e verdadeiro. E antes de acabar as férias, nosso Charles vai voltar. Paz, alegria geral. Todo morro vai sambar antecipando o carnaval...”.
Obrigado, Ben Jor; obrigado, Manuel Bandeira; e obrigado, MC Poze! Fonte: https://www.estadao.com.br




