No livro "Disritmia", escritor e jornalista conta histórias de muita gente

 

O jornalista e escritor Ronald Lincoln segura seu livro, "Disritmia" - Arquivo pessoal

 

Cynthia Araújo

Entrei atrasada em uma conversa lotada da Flip, a tempo de ouvir Ronald Lincoln responder a perguntas que me irritaram em tempo recorde.

Quem aquela senhora achava que era pra julgar pessoas de forma tão altiva, como se o sucesso do jovem escritor demonstrasse que qualquer outro que também nasceu e viveu na favela, mas se desvirtuou do caminho da retidão moral e da licitude, teve escolha de ser diferente?

Mas quem sou eu para achar que podia entender a realidade que também nunca foi a minha e me sentir no direito de julgar os julgamentos alheios?

Sinto-me um pouco mais à vontade para fazer isso depois de ter lido Disritmia, o livro de estreia do jornalista Ronald Lincoln: um jovem negro, cria do Jacarezinho, no Rio de Janeiro.

"Disritmia" (ed. Malê) é um verdadeiro alterador de ritmo. Cada conto sobre histórias ficcionais ou não de sua vivência periférica pesa um absurdo e se entranha na gente como luto. Não é possível ser a mesma pessoa depois da sua leitura. Não é possível ver o mundo do mesmo jeito depois de vê-lo pelos olhos de Ronald.

Em 16 contos, o autor nos leva para dentro de casas, escolas, hospital, ônibus, campos de futebol, e faz pessoas que têm escolha o tempo todo entenderem que existe muita gente que realmente não tem. Na quarta capa do seu livro, Rodrigo Santos diz que se trata da "história dos meus, dos seus, contada por um dos nossos". Percebi a potência que isso tem lendo o livro de Ronald, porque, mesmo nas histórias que, de certa forma, já vi sendo contadas no jornal, faltava um sentimento de pertencimento que só entendi nas suas.

Queria ter tido contato com uma obra assim ainda na adolescência, antes de formar os preconceitos que minha classe social, minha cor, meus privilégios lapidaram em mim. Demorei anos a entender quanta bobagem eu pensava antes de entrar na faculdade. Tive que ir atrás de tudo aquilo que não chegaria a mim de outra forma e enfrentar a irritação da minha bolha quando passei a não concordar mais com ela.

Acredito que escrever move o mundo e, depois de ler "Disritmia", acredito mais.

 

Morte sem Tabu: Por que o título "Disritmia", que dá nome ao livro e a um dos contos?

O conto que dá nome ao livro foi inspirado na música famosa do Martinho da Vila, na ideia da mulher que tem o poder de hipnotizar, de tirar a disritmia e curar seu nego. Mas a palavra tem significado amplo e dialogou com a ideia da vida no limite, das mudanças bruscas de direção, das disritmias dos outros contos.

 

Eu quero me esconder debaixo dessa sua saia Pra fugir do mundo Pretendo também me embrenhar no emaranhado Desses seus cabelos Preciso transfundir seu sangue Pro meu coração, que é tão vagabundo. Martinho da Vila, na música "Disritmia"

 

Morte sem Tabu: Você já tinha publicado contos antes. Como surgiu a ideia do livro?

Foi um convite da Malê, do meu editor Vagner Amaro, depois que publicamos um dos contos na antologia "O Movimento Leve". Eu já tinha alguns outros contos e achei que pudesse fazer um mosaico de personagens favelados, transmitindo sentimentos através da literatura.

 

Morte sem Tabu: Eu costumo dizer que pensar sobre a morte é privilégio de quem não convive com ela o tempo todo. Seu livro é um livro sobre a morte rondando a vida?

 

Ronald Lincoln: Todo favelado tem um diálogo, uma negociação diária com a morte. Você sai de casa com risco de tiroteio, volta para casa e não está seguro. É uma morte que não é natural, ela vem do elemento social.

Quem mora na favela está diante da morte a todo tempo. Todo mundo tem uma história sobre uma situação em que achou que poderia morrer e escapou por um triz. Eu trago isso no "Teoria da Relatividade", quando o traficante diz que aceita a morte desde que seja de forma honrada; no "Jogador Caro", quando o protagonista reflete sobre quantas vezes imaginou as formas violentas pelas quais poderia morrer, mesmo sendo um prodígio no futebol, uma pessoa que ascendeu financeiramente e teoricamente estaria mais distante dessa realidade.

O primeiro conto do livro, "Intruso no Ciep", é uma reflexão sobre o que é certo e errado para defender a vida de alguém. Em outras histórias, reflito sobre o amor no limite da privação de liberdade, de quem está dentro e fora de uma penitenciária. Escolhi o conto "Rian enganou a morte" para fechar o livro, porque é uma metáfora de todas as personagens, sobre a luta para viver em plenitude. Se necessário, vai ter desenrolo com a morte. Mesmo os que partem, de alguma forma, subvertem a vida.

Umas das referências para esse último conto foi um curta da Pixar, em que um ciclista está numa corrida e se depara com a morte e dá um jeito de enganá-la. Também me pegou muito a morte, como personagem do livro Pulp, do Bukowski. Ela é sedutora e elegante e contrata o detetive, que é protagonista, para solucionar um caso.

 

Morte sem Tabu: "Tia, nem tive tempo de dizer meu nome, a senhora não deve lembrar, porque me chamou de menino direto. (...) A arma era de verdade não, só que precisava levar um dinheiro pra casa, dar um levante, as criança precisa comer". Esse é o recado deixado por um homem que assalta um ônibus no conto "Bilhete", um dos que mais me tocou, porque eu acreditei na genuinidade da justificativa daquele personagem. Você humanizou quem a gente só vê ser tratado como bandido.

 

Ronald Lincoln: Esse foi o primeiro conto que publiquei, no concurso para jovens escritores negros da Editora Malê, em 2017. Você pescou no livro a ideia da raiz desse conto. Eu cresci no morro do Jacarezinho, com pais que sempre trabalharam apesar de terem crescido em pobreza extrema. São exceção. Poderia ter dado tudo errado também, seria natural diante da condição de quem cresce em morro. Mas essa estrutura familiar me deu um degrau a mais de acesso. Minha família que ainda mora no morro fica muito feliz, meus amigos também me dão moral. Mas eu sei que sou exceção. Eu não consigo ver os amigos que cresceram comigo como pessoas diferentes na essência. Entendo que não tiveram as mesmas oportunidades, a estrutura. Essa falta motiva decisões abruptas na vida, como a do personagem principal.

E a dona Nilma [a "tia" para quem o bilhete é deixado] é uma mulher conservadora, fala em um tom religioso por diversas vezes, mas no fim ela faz uma oração pelo ladrão. É um tipo de olhar comum na favela, mais humano. Ela sabe o que é ter criança com fome.

 

Morte sem Tabu: O título "Quase da Família" diz muita coisa. Nesse conto, em que você se inspira na primeira morte por Covid no Brasil, a empregada doméstica Celina, contaminada pelos patrões, também morre? Ou ela pode ir pra Guapimirim realizar seu sonho de viver bem?

 

Ronald Lincoln: Para mim, ela morre. Até por respeito à história real da mulher que morreu no início da pandemia, uma das primeiras com covid, se não me engano. Mas deixei em aberto para o leitor decidir. Teve gente que me mandou mensagem indignada com o final. Mas eu costumo dizer que, de certa forma, a Celina se libertou daquela família, conseguiu olhar para si. Nesse sentido, ela venceu.

Guapimirim foi uma cidade que visitei quando estava escrevendo e me cativou muito. Ela fica relativamente próxima do Rio, mas é bucólica, cheia de cachoeiras, num outro ritmo. E fiquei refletindo que gostaria demais de morar num lugar como Guapi, criar meu filho com calma, perto das águas, do mato, mas na melhor das hipóteses acho que só seria possível numa aposentadoria. Algo meio Racionais MC's quando canta: "às vezes eu acho que todo preto como eu só quer um terreno no mato só seu". A Celina é muita gente.

 

Morte sem Tabu: O que é verdade ou não em Imperatriz Furiosa, o conto sobre uma passista que é assediada enquanto trabalha em um casamento, pelo próprio noivo que a contrata?

 

Ronald Lincoln: Esse conto surgiu de uma reportagem que escrevi para o UOL, em 2017, sobre passistas de escolas do Rio. Estava rolando uma polêmica sobre Globeleza, hiperssexualização. Daí eu fui ouvir um grupo de passistas que debatiam feminismo, assédio, racismo e direitos trabalhistas no meio do samba. Uma delas, contou que foi assediada por um noivo num casamento. Ela deu a negativa e seguiu o show com a bateria. Esse recorte me deu o impulso para explorar as nuances do trabalho da passista e sobre maternidade negra também.

Morte sem Tabu: "Nós é bom, mas não é bombom". Você que criou essa frase? O que ela significa?

 

Ronald Lincoln: Não criei, não. É uma expressão que o pessoal usa bastante no subúrbio. Ela é versátil. Tem o tom de brincadeira, mas também de aviso de que o personagem não é de levar desaforo. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br