Política pública deve fortalecer o acolhimento e ajudar na construção da autonomia

 

Padre Júlio Lancellotti em homenagem pelos mais de 40 anos dedicados aos direitos humanos - Marlene Bergamo/Folhapress

 

Laura Müller Machado

Mestre em Economia Aplicada pela USP, é professora do Insper e foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo

 

O que tem causado o aumento recorde de pessoas em situação de rua?

Como relatei na última coluna, sabemos que os estados brasileiros com o maior número de pessoas em situação de rua por habitante são os mais ricos, como São Paulo e Mato Grosso do Sul, enquanto os mais pobres têm menor incidência, segundo o Cadastro Único do governo federal.

Sabemos também, a partir dos relatórios da Rede de Política Social Europeia, que a população em situação de rua cresceu 15% ao ano na Alemanha e 14% na Inglaterra.

Por último, sabemos que no Brasil a taxa de crescimento da população em situação de rua é de 12% ao ano (um crescimento gradativo desde 2012) e que o comportamento da pobreza, aqui entendida como o perfil dos beneficiários do Bolsa Família, é muito diferente. Numa rota de oscilação entre altas e baixas, o número de famílias com menos de R$ 218,00 per capita foi de 14,6 milhões em 2012 para 14,2 milhões no ano passado.

É possível que estejamos frente a um fenômeno de histerese, a tendência de um sistema conservar suas propriedades na ausência do estímulo que as gerou. Uma vez que houve um agravo na pobreza, em 2019 e em 2021, as pessoas que passaram a ficar na rua não conseguiram reverter a situação no período, mesmo com o recuo geral da pobreza.

Dados indicam que antes de irem para a rua, essas pessoas tinham casa e família, e que alguma ruptura as levou a essa condição. Um censo realizado pela cidade de São Paulo com a população em situação de rua em 2021 mostrou que 50,2% das pessoas vivenciaram algum rompimento de vínculo com a sua comunidade, como conflitos familiares e separações motivadas por diferentes causas, antes de irem para a rua.

Eventos drásticos podem ter ocorrido nesses núcleos familiares, gerando rompimentos tão agudos quanto. No entanto, essas situações não acontecem desde sempre? Havia menos ruptura familiar ou havia mais espaço de acolhimento? O que mudou para a situação alcançar esse patamar?

Em capítulo do livro "Tinha uma pedra no meio do caminho: invisíveis em situação de rua", o padre Júlio Lancellotti escreve: "temos a intolerância da política, a intolerância na retórica do ódio. Mas há uma retórica do ódio que está sendo internalizada e se explicita no relacionamento humano, na incapacidade de conviver."

Talvez estejamos perdendo a força da rede de apoio e da convivência, em especial entre as famílias mais vulneráveis. Em caso de separação, uma pessoa rica provavelmente irá morar sozinha. Uma pessoa pobre não tem como recorrer a essa alternativa.

A principal prática de Júlio Lancellotti é ofertar acolhimento e pertencimento. Grande parte de sua atuação envolve comida e alojamento, mas também a reconstrução de vínculos com a família e com a sociedade. Esses passos são, sem dúvida, primordiais para a recuperação de uma pessoa. Ao acolher, ele abre espaço para que o cidadão se encaminhe para a autonomia.

A política pública deveria começar com uma equação semelhante, de fortalecer o acolhimento, o atendimento de saúde e o apoio à reinserção familiar para, então, auxiliar na construção de uma vida nova independente. Não aprender com o padre é perder tempo. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br