Culpa-se o El Niño pelo pandemônio de agora, como se o fenômeno fosse um fantasma sem explicações

 

Flávio Tavares

Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Os alertas deixam cicatrizes visíveis até à luz do dia, mas fazemos de conta que não vemos ou não sentimos as consequências e que, por isso, não existem. Tempos atrás, chuvas brutais despencaram sobre o litoral paulista, com inumeráveis perdas. Agora, no extremo sul do Brasil, as constantes chuvaradas destruíram lavouras e casas, deixando milhares de habitantes desabrigados e também matando. Na Amazônia, região de rios onde chovia quase todos os dias, a longa estiagem de agora chega a impedir até a navegação, que é a forma habitual de a população viajar de um lado a outro. Em plena primavera, na maioria das regiões do País, o calor faz pensar que o verão se antecipou. Ao mesmo tempo, no extremo sul do Brasil, o frio continua, como se o inverno não cedesse lugar a outra estação.

Se sairmos da realidade brasileira, tudo é ainda mais penoso, com o que me permito recordar duas situações. Na gélida Sibéria, houve longos dias de calor em pleno inverno do passado ano de 2022. Mais recentemente, coincidindo com as enchentes no sul de nosso País, na distante Líbia a chuva intensa destruiu cidades inteiras e matou milhares de habitantes.

Tudo isso nos faz exclamar: “O tempo está ficando louco”.

Em verdade, porém, os loucos somos todos nós, que nos negamos a aprender com a natureza, sem perceber o perigo das mudanças climáticas, causa profunda deste pandemônio de agora. Culpa-se o El Niño, como se o fenômeno (nas duas pontas) fosse um fantasma que surge sem explicações, aparecendo porque unicamente fantasma é. Em verdade, porém, tudo isso é culpa do nosso descuido ou, mais até, da nossa cegueira em torno da preservação do meio ambiente.

A causa dessa cegueira talvez tenha raízes na tardia incorporação ao cotidiano do conceito de meio ambiente e, por extensão, do próprio conceito (e percepção) das mudanças climáticas. Essas mudanças passaram a ser notadas com o surgimento da revolução industrial, que mudou o cotidiano da população em todo o mundo e tornou mais confortável o estilo de vida. Nos descuidamos, porém, quanto às consequências dessa revolução que nos propiciava conforto, sem tomar sequer alguma medida ou ação para mitigar ou abrandar seus efeitos negativos.

Assim, nas últimas décadas, as mudanças do clima cresceram de forma acelerada, transformando-se na crise climática atual, visível no dia a dia de quase tudo o que nos cerca. Ou até das atividades profissionais de cada um de nós.

Não faltaram advertências. A derrubada da Floresta Amazônica transformou-se no grande escândalo do século 21. A insensatez de destruir bosques a esmo vem de longe e começou na colonização do País pelos europeus, com o corte do pau-brasil, denominação da cor da brasa utilizada para tingir tecidos e que deu nome à Nação. Acentuou-se, entretanto, nas últimas décadas, com o corte acelerado dos bosques da Mata Atlântica, a imensa área verde que perpassa vários Estados de nosso país.

Na cidade de São Paulo, o bairro de Pinheiros tem este nome porque estava cheio de araucárias até, pelo menos, o início do século 20, quando a incessante derrubada serviu à construção de moradias, um dos pontos de partida para que a atual metrópole seja hoje a maior e mais habitada cidade da América do Sul.

Os bosques são um dos principais reguladores dos ciclos das chuvas. No entanto, nos casos de estiagens prolongadas ou intermitentes, as queimadas se alastram por dentro dos bosques aparentemente viçosos e, sem danificar as árvores adultas, o fogo destrói o solo e o desnuda, consumindo as folhas secas, como explica José Lutzemberger, um dos mais respeitados ambientalistas brasileiros, em seu livro Manual de Ecologia – do Jardim ao Poder. O solo se desestrutura e começa a erosão. As encostas levarão milhares de anos para se recuperar, completa ele.

E vai adiante, num relato que explica o horror das mudanças climáticas: “Desde a Revolução Industrial já aumentamos em quase 60% a concentração de gás carbônico na atmosfera pela ação dos combustíveis fósseis – petróleo, carvão, lignina e gás natural – e também pelos incêndios florestais”.

A advertência de Lutzemberger foi feita anos antes dos incêndios no Pantanal de Mato Grosso, acompanhada de outra tétrica previsão que se confirma pouco a pouco: as calotas polares perderão gelo cada vez mais, havendo o risco de cidades inteiras desaparecerem pelo aumento do nível dos oceanos. “A Holanda inteira poderá desaparecer” é a previsão.

Há, ainda, a contaminação da água consumida principalmente nas grandes cidades e que é uma das principais causas do atual surto de hepatite A em distintos pontos do País e do mundo. Na Amazônia, boa parte dos rios está contaminada com o mercúrio lá jogado para facilitar a garimpagem ilegal.

Tudo isso faz afirmar que nossa cegueira nos leva a brincar com fogo, num suicídio lento, mas evitável, se mudarmos o estilo de vida e nosso comportamento ante a natureza.

*JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Fonte: https://www.estadao.com.br