Sempre foi sobre a vida

Quando estava escrevendo a primeira matéria como autora aqui no Morte sem tabu, sobre a primeira morte com que tive que lidar na minha vida, comecei a tentar me lembrar qual havia sido meu primeiro contato com o assunto.

E me surpreendi pensando que, provavelmente, tinha sido por meio das revistinhas da Turma da Mônica.

A personagem Dona Morte faz parte da Turma do Penadinho, criada por Mauricio de Sousa na década de 1960. Como leitora fiel dos gibis e almanacões da Turma da Mônica desde que aprendi a ler, na década de 1980– e até hoje, ainda que com menos frequência–, já vi centenas de histórias da turma que vive no cemitério. Foi certamente em uma delas que li a palavra morte pela primeira vez na minha vida.

Eu e, com certeza, muitas outras pessoas.

O tamanho do impacto da Turma da Mônica não é nenhuma novidade. Trata-se do quadrinho brasileiro mais publicado no mundo, com mais de um bilhão de gibis vendidos. As criações de Mauricio de Sousa já foram reproduzidas em mais de 100 países.

Ainda assim, a percepção de que milhões de pessoas podem ter encontrado sua primeira referência sobre o maior tabu da vida moderna pela primeira vez nessas histórias me fez querer conversar sobre isso com o Mauricio de Sousa, um astro para a minha geração, de qualquer maneira. Eu já vinha querendo escrever sobre a Dona Morte, mas entendi que uma matéria sobre ela sem a presença do seu criador não fazia sentido.

E eis que trago aqui uma das conversas mais legais e generosas que já tive. Não acho justo recortar só um pedacinho deste bate-papo, que foi muito mais do que uma entrevista, e guardar o resto só para mim.

Agradeço a Camila Appel, ao Mauro de Sousa e ao Jal, por permitirem esse encontro, mesmo que não– ainda, espero– presencialmente. E, também, a Julia, 11 anos, e a Alice, 7, grandes curadoras da arte dos gibis.

 

O começo da filosofia do fim

Mauricio Araújo de Sousa é, sem dúvidas, uma das pessoas mais conhecidas do país. É o mais famoso e premiado cartunista brasileiro. Nem todo mundo sabe que ele é membro da Academia Paulista de Letras, onde ocupa a cadeira de número 24, e que seu primeiro ofício foi como repórter policial, mas posso apostar que pouquíssimos brasileiros desconhecem o criador da Turma da Mônica.

- Foi ótimo passar pela Folha como repórter, minha relação com ela é muito especial.

- Deixa eu anotar aqui para incluir na matéria e fazer um carinho na dona da casa.

Sua primeira tirinha, com o cachorrinho Bidu, foi publicada em 1959, na Folha da Tarde, ainda como repórter. De lá para cá, já são mais de 400 personagens. Mais de uma dezena deles fazem parte da Turma do Penadinho, um fantasminha de bom coração, criado em 1963.

A criação da Dona Morte, segundo Mauricio, remonta a sua infância em Mogi das Cruzes (SP). Ele e seus irmãos sempre iam com a mãe ou a avó aos velórios, nas casas das pessoas. "Eu estive até mesmo com algumas pessoas em seus últimos minutos de vida". Mauricio percebia a tristeza, aquela sensação de perda no choro das famílias, mas via aquele rito como algo natural –a morte como uma parte necessária da vida.

"Na conversa das pessoas de antigamente, minha avó, meu bisavô, era tão natural o ciclo da vida e da morte, que isso era repassado para os filhos, os netos. Nós percebíamos como algo realmente natural: triste, mas não lancinante. E com isso, no momento em que eu estava fazendo história em quadrinhos, eu achei que podia falar alguma coisa sobre a morte de outra maneira: não com choro, com tristeza, que eu podia fazer um pouco de filosofia".

"Não me olhe assim, é o ciclo da vida", diz a Dona Morte na história "Os animais", da Turma do Penadinho (Mônica n. 45 de 2019), que retrata a tristeza de crianças que perderam seus bichinhos de estimação –para muitas pessoas, certamente, a primeira perda significativa da vida.

A narrativa do Mauricio sobre os velórios que o fizeram perceber a morte com a naturalidade que lhe é inerente me remeteu ao livro "História da Morte no Ocidente", de Philippe Ariès. O historiador narra que apenas no último século a morte se tornou um tabu. Antes, "a partir do momento em que alguém ‘jazia no leito, enfermo’, seu quarto ficava repleto de gente, parentes, filhos, amigos, vizinhos e membros de confrarias. As janelas e venezianas eram fechadas. Acendiam-se os círios".

Com a retirada da morte de dentro das nossas casas e seu deslocamento para os hospitais, as funerárias e os cemitérios, perdemos a familiaridade com a sua existência.

 

O ciclo

Talvez isso não acontecesse se a gente nunca parasse de ler as histórias da Turma da Mônica, eu disse para o Mauricio.

"Fico lisonjeado", ele respondeu.

A Turma do Penadinho faz com que termos fúnebres e pouco palatáveis para a maioria das pessoas, como cemitério, caixão, túmulo, alma penada, cremação e morte – ao vivo e a cores – se tornem agradáveis. Fiz uma associação à leveza das histórias, ao humor dos personagens. Mas Mauricio me deu uma resposta genial.

"Sabe o que é, Cynthia? É que todos eles são muito vivos. Depende do nosso olhar, da nossa sensibilidade e às vezes até para que a gente entenda a saudade que a gente tem".

Suas palavras me fizeram pensar nas de Santo Agostinho: a morte não é nada/eu somente passei/para o outro lado do Caminho/Eu sou eu/vocês são vocês/o que eu era para vocês/eu continuarei sendo.

Uma vez escrevi que nós, humanos, somos todos feitos do mesmo material, finito. Mas cada um de nós é infinito. De possibilidades, de memórias que fazem com que renasçamos constantemente e, assim, existamos enquanto formos saudade de alguém. A vida termina. Mas nós não terminamos.

Como me disse Mauricio, somos continuação.

O ciclo natural da vida e da morte é cuidadosamente retratado em muitas das histórias da Dona Morte. Mas não apenas nelas.

Na história "O Ciclo" (Cebolinha n. 45 de 2019), assinada pelo próprio Mauricio, Cebolinha pergunta ao pai se seu cãozinho, Floquinho, ficará para sempre com eles. O Seu Cebola responde que uma vez fez a mesma pergunta ao seu pai, avô do Cebolinha, e ele disse que "na natureza da vida… todos têm um ciclo!", que "todos nós temos um começo, um meio… e um fim". "Mas o que mais importa é o amor que podemos compartilhar enquanto estamos aqui". "Dar o melhor de nós para aqueles que passam pelo nosso caminho… pelo tempo que estivermos juntos!".

Uma história muito famosa para além dos fãs da Turma da Mônica é a da irmã do Chico Bento, Mariana, como me lembrou José Alberto Lovetro, o Jal, jornalista e cartunista que é também assessor de comunicação do Mauricio. A personagem é representada por uma estrelinha, que retorna ao convívio das demais estrelas no céu depois de adoecer e morrer.

Comentei com o Mauricio sobre a extrema sensibilidade dessa história, que tem uma passagem que diz "Luto tanto pra ficar… luto tanto, tanto…". Marianinha, como é carinhosamente chamada pelo irmão, está falando sobre a sua luta para continuar com a sua família. Mas a leitura imediatamente remete ao luto. Tanto luto. Tanto.

 

Pura realidade

Eu perguntei para o Mauricio se ele havia pensado no tamanho do impacto de uma personagem como a Dona Morte em um quadrinho para crianças. Perguntei se ocorrera a ele que seria o primeiro contato de muita gente com o assunto, assim como foi comigo.

Ele respondeu categoricamente que sim. "Eu achei que poderia e deveria fazer, até porque tem até anjinho na história, tem o outro lado. Eu acho que nós devemos colocar tudo que puder, de alguma maneira, levar algum tipo de informação que seja positiva, quando a gente trabalha para crianças".

Lendo gibis mais recentes para escrever esta matéria, algumas frases me reportaram a discussões muito profundas sobre a finitude humana. O "pouco de filosofia" de que Mauricio havia falado é, na verdade, muita filosofia. Mencionei a história "Classificados", da Turma do Penadinho (Almanaque da Turma da Mônica n. 06 de 2021), em que ao ouvir de uma de suas vítimas que era muito jovem, a Dona Morte responde: "Você sabe que comigo esse negócio de idade não funciona!".

Contei que essa história me remeteu ao texto que escrevemos no ano passado sobre Marília Mendonça, aqui no blog. Sabemos que pessoas morrem o tempo todo, em todo lugar. Sabemos que estão vivas e que no segundo seguinte não estão mais. Mesmo jovens. Mesmo jovens demais. Mesmo saudáveis. Mesmo saudáveis demais. Mas quem morre é sempre o outro. Até que não é mais.

"Pura realidade", disse Mauricio.

Perguntei se as histórias da Dona Morte têm alguma orientação especial para serem roteirizadas.

Ele respondeu que conversa com a equipe sobre os comportamentos e as personalidades de cada personagem. Mas que, como a maioria dos roteiristas leu muitas histórias, eles já sentiram e apreenderam suas características, "menos de um deles, que é o Horácio, que é um pouco tabu, mas em um outro sentido. O Horácio é o meu alterego, então eu não consegui passar para a equipe, porque eles não conseguem pegar toda a minha filosofia, tudo que eu sinto de um jeito muito particular. Tentei várias vezes, com diversos roteiristas, mas não era eu, não era o Horácio".

Sobre a Dona Morte, Mauricio diz que a equipe assimilou os cuidados para manter a Dona Morte bem ativa e bem viva. Aliás, bem feminina.

Insisto se há alguma premissa específica para essa personagem.

"Nenhuma história pode ser triste. Sempre é de alguma maneira um aprendizado".

Realmente, as histórias com a Dona Morte são sempre divertidas. Muitas vezes, ela confunde a pessoa a ser levada com ela, o que enseja situações muito engraçadas. Perguntei se existe alguma intenção específica com essa forma de narrar as aventuras da morte. Mauricio respondeu que é uma forma de quebrar a imagem da dureza da morte a partir de suas fraquezas, dos apuros por que passa.

Aliás, a humanização da Dona Morte é levada muito a sério. É ela a responsável pelas atividades domésticas do cemitério, o que a faz ter que lavar roupa, arrumar cama (lápide), ir ao supermercado e dizer que as coisas estão "pela hora da morte".

 

Sempre foi sobre a vida

Dona Morte, como não poderia deixar de ser, também trabalha muito. De vez em quando, ela reclama da concorrência.

Mauricio acredita que ela realmente tem "uma bela concorrência com os seres vivos aqui". "Aliás, olha aí o que estamos passando agora", ele me diz.

Aproveito para perguntar se houve alguma história da Turma da Mônica que mencionou a pandemia. Em uma entrevista dada para a PUC-Rio em 2004, o criador da Turma da Mônica disse que evita falar sobre fatos reais que podem trazer memórias desagradáveis ao leitor.

"Essa preocupação continua da mesma maneira, a ponto de, por exemplo, durante a pandemia, naqueles tempos em que estavam sendo mostrados cemitérios imensos, cruzes, eu pedi ao pessoal para evitar desenhar cemitérios com cruzes nas histórias. Seria olhar para a história e lembrar daquelas fotos muito tristes. A pandemia esteve próxima da maioria dos leitores e eu preferi não mencionar".

Por outro lado, ele registra "a obrigação, junto ao nosso público, de informar, como quando o Cascão lavou as mãos. Eu liberei o Cascão para lavar as mãos com sabão e um sorriso no rosto. Isso marca e ajuda as pessoas a se lembrarem dos cuidados necessários, lembrar de vida, não de morte".

- Você tem uma preocupação muito grande de que a morte ajude a pensar sobre a vida né, Mauricio?

- Exatamente, esse aparente contrassenso.

Em muitas histórias, a Dona Morte conversa com as suas vítimas antes da passagem para o outro lado do caminho. Toma até café com biscoito. Na entrevista para a PUC, ele diz que gostaria de pensar em uma morte "que chega com um papo, uma explicaçãozinha, uma marquinha no caderno dizendo que chegou a nossa hora".

Acho que Mauricio nos ajuda a fazer essa conversa prévia. A cada vez que a morte nos lembra que nosso tempo por aqui é limitado, podemos pensar mais no presente– e viver da melhor maneira possível.

A propósito, no novo arco da Turma da Mônica Jovem, chamado "Uma luz que se apaga", os jovens enfrentarão uma perda e terão que aprender a conviver com o luto. O ciclo natural da vida- que inclui a morte- foi indicado como a história da edição. Conforme o texto de divulgação que a assessora de comunicação Bete Nicastro gentilmente me encaminhou, a ideia não é transmitir uma mensagem de tristeza ou desmotivação, pelo contrário: "é um ensinamento de vida, que apesar de sua fragilidade, não nos impede de viver, de sonhar, de acreditar e, principalmente, realizar".

Que assim seja.

Aliás, ainda não acredito que conversei sobre a morte com Mauricio de Sousa- também Araújo, como eu, ele destacou ao perguntar o meu nome todo. Foi um desses momentos que fazem valer a nossa vida inteira. Aliás, é sobre vida. Sempre foi sobre a vida.

- Mauricio, sei que já tomei muito o seu tempo. Mas posso fazer uma última pergunta?

Ele tem a infinita generosidade do Horácio.

- Por que não tem atração da Turma do Penadinho no Parque da Mônica?

- Não tem ainda. O pessoal está até reclamando que não tem, mas no parque antigo tinha.

- Quero levar a minha filha.

- Quantos anos ela tem?

- Dez meses.

- É você quem quer ir, né?

- Isso.

- Ela deve ser uma fofura.

- É sim. Minha única filha. Ainda estou na fase do encantamento.

- O encantamento vai continuar. E aumentar.

Obrigada, Mauricio. Infinitas vezes, obrigada. Por mim, pela minha geração. E também pelas de antes, as de agora e as do futuro.

 

Cynthia Pereira de Araújo

Doutora em Direito pela PUC-Minas, com doutorado-sanduíche pela Universidade de Vechta/Alemanha (bolsista Capes-Daad). Autora da obra. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br