Tentativa de destruição das religiões de matriz africana é mais uma face do racismo

 

Pessoas participam da 12º Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa na orla de Copacabana, no Rio de Janeiro. - Ricardo Borges/Folhapress

  

Lucas Obalera

Homem negro de Candomblé. Cientista social pela PUC-Rio e mestrando de filosofia na UFRRJ. Pesquisador-ativista na área de relações raciais. Como escritor e poeta, desenvolve trabalhos autorais sobre racismo religioso e também que buscam afirmar e difundir a beleza e os valores político filosóficos das religiões de matriz africana. Em 2019, publicou o ebook “Por uma perspectiva afro religiosa: estratégias de enfrentamento ao racismo religioso”

Iniciamos esse texto fazendo um convite a você leitor (a): consegue imaginar igrejas cristãs indo ao STF (Supremo Tribunal Federal) defender a constitucionalidade de seus rituais? Ou o Conselho Tutelar, junto à polícia, retirando da mãe a guarda de uma criança por ela fazer catequese? Ou mesmo igrejas sendo invadidas, apedrejadas e incendiadas?

Se os valores, práticas culturais e religiosas dos europeus fossem criminalizados, demonizados, perseguidos e destruídos na história do Brasil, a resposta seria sim. Mas o fato é que essas indagações baseiam-se em casos reais que aconteceram recentemente com afrorreligiosos e terreiros.

Estamos falando de agressões verbais, simbólicas, físicas, psicológicas e patrimoniais que encontram no racismo e no aprimoramento da lógica colonial-moderna brasileira uma terra fértil para sua legitimação e perpetuação.

Essas provocações buscam chamar a atenção para as dinâmicas raciais implícitas ao processo de perseguição e tentativa de destruição das religiões de matriz africana e, portanto, tratar desse cenário de violência como mais uma face do racismo.

Apresentar o debate nesses termos, isto é, assumir racismo religioso como uma categoria, nesta presente reflexão, tem o intuito de visibilizar o quanto do processo dessa violência está relacionado com um projeto de poder branco-cristão ocidental. Projeto que tem na demonização aos terreiros uma ferramenta de ruptura entre pessoas negras de diversas denominações religiosas e que também afasta-nos de nossa ancestralidade, história, memória e das nossas potencialidades culturais oriundas de nosso paradigma cultural negroafricano.

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Esse entendimento dialoga com as reflexões de Frantz Fanon sobre o sistema colonial. Para ele, o "opressor devido à sua autoridade impõe ao sujeito colonizado novas maneiras de ver e, de uma forma singular, um juízo pejorativo acerca das suas formas originais de existir".

Percebem como há uma espécie de continuidade, um processo sistemático de destruição de um modo de vida negroafricano?

Uns ainda podem estar se perguntando o que isso tem a ver com os terreiros? Tudo! Diante de toda tentativa de esfacelamento cultural, espiritual, psicológico, territorial, social, familiar e político provocado pelo Estado e igrejas cristãs no Brasil, foram os terreiros um dos espaços de subversão aos efeitos perversos impostos aos africanos e seus descendentes.

Foi a reorganização negra nos terreiros um dos acontecimentos fundamentais à preservação e continuidade de nossos modos de vida, pensamento e de percepção sobre o mundo negroafricano e, consequentemente, de nossas vidas.

Os valores civilizatórios do povo negro que foram preservados dentro dos terreiros expressam a pluralidade da nossa existência, a diversidade religiosa na nossa história e o nosso encontro com uma forma negra de pensar o sagrado, que sempre significou um perigo para uma lógica de domínio que tenta se colocar como universal e que se encarna em uma produção religiosa que gera morte, não somente física, mas também social.

Estamos falando de um contexto religioso que opera no limite da existência humana, no qual nossa humanidade é violentada e armas são apontadas em direção aos nossos corpos.

É nessa conjuntura de uma teologia necrosada que banaliza a vida e tenta paralisar o povo negro e sua afro-religiosidade, que uma necroteologia se move através das estruturas de morte construídas contra as comunidades de terreiro no país. Essa lógica de morte que está presente no racismo religioso tem servido de ferramenta de inimizade e separação do povo negro com a sua identidade.

O racismo religioso não somente usa do instrumento da religião e da construção teológica para demonizar todo um povo, ele também organiza as diversas violências contra as comunidades de terreiro dentro do pensamento religioso.

Vivemos um momento único na história brasileira, nunca tivemos tantas pessoas evangélicas e isso nos aponta uma transição religiosa que vem se organizando politicamente.

Junto com isso também estamos presenciando o aumento da violência contra os terreiros. Mas é importante pontuar que 59% dos evangélicos brasileiros são negros, portanto o nosso desafio enquanto comunidade negra é urgente.

O racismo continua usando nossos corpos para operar violências e a sua face religiosa contribui intencionalmente para uma fragilização da comunidade negra em torno de um projeto político de enfrentamento a essa realidade de morte que tenta apagar nossa história, religiosidade e ancestralidade.

A comunidade negra cristã para dar conta das causas e consequências do racismo religioso, precisa enfrentar as teologias de morte que se levantam contra os povos de terreiro, pois são essas teologias de herança colonial que constroem a ideia de um deus branco-ocidental que autoriza a nossa escravização, demoniza as religiões tradicionais de matriz africana e transforma as nossas vidas em propriedades do Estado, que pode nos prender, nos fuzilar e relativizar as violências que as religiões de matriz africana sofrem.

É preciso aprender, dialogar e construir com o povo de terreiro alternativas revolucionárias à realidade de morte produzida por essa religiosidade de morte. Afinal, quando enfrentamos o racismo religioso fortalecemos um projeto político e civilizatório de todo o povo negro.

Sonhar, planejar, projetar, articular e atuar na direção de realização de outros mundos possíveis a partir de nossos referenciais culturais negroafricanos, é preciso! Fonte: https://www1.folha.uol.com.br