(Foto: Sandro Pereira/FotoArena/Estadão Contéudo/14/01/2021)

 

Governador Wilson Lima manda polícia proteger hospitais em Manaus e decreta toque de recolher das 19 às 6 horas. Famílias compram cilindros de oxigênio por conta própria para salvar vidas dentro de casa, gastando até R$ 10 mil pelo produto

 

Manaus (AM) – Era madrugada de quinta-feira (14 de janeiro de 2021), quando a tragédia se iniciou em Manaus. Pacientes começaram a morrer asfixiados por falta de oxigênio dentro dos hospitais públicos 28 de Agosto, Platão Araújo e Getúlio Vargas. Primeiro um, depois outro e, pela estimativa do Sindicato dos Médicos do Amazonas (Simeam), talvez entre 20 a 40 amazonenses podem ter vindo a óbito por falta dessa assistência. O número não é preciso por falta de informações do governo do Amazonas, que não respondeu aos pedidos de informação enviados pela reportagem sobre os dados. 

O drama humanitário se estendeu para muito além do caos das UTIs Covid. Pela capital, familiares desesperados pelo desabastecimento de oxigênio decidiram ajudar seus parentes internados e os que estão em tratamento dentro de suas casas, comprando cilindros de empresas particulares por até R$ 10 mil. De 1º a 13 de janeiro, 518 pessoas morreram no Amazonas devido ao novo coronavírus. Na terça-feira (13), a Prefeitura Manaus informou um número inédito de sepultamentos em cemitérios públicos: 94. A média normal de enterros, para mortes por várias causas, é de 34.

A falta de oxigênio nos hospitais de Manaus começou na noite de quarta-feira (13) e avançou pela madrugada, segundo o presidente do Simeam, Mário Vianna.

“Falam em 20 a 40 pessoas que morreram na madrugada, mas não temos como precisar. Temos a impressão que as pessoas estão ocultando. Não temos serviço de verificação de óbitos. Não tem acesso a informação. Se eu ligar para a Fundação de Vigilância em Saúde e pedir, não vão me dar”, desabafou o médico.

“O Brasil todo tem que pensar que se não houve uma intervenção [na saúde] e se não houver uma canalização de recursos para o Amazonas, o Brasil pode vivenciar a situação de Manaus. Até porque nós temos mutações virais que podem se disseminar Brasil afora e tornar a situação mais grave”, completou.

No último domingo (10), o Japão detectou uma nova variante do coronavírus em quatro viajantes que estavam no Amazonas. Ela é da mesma cepa responsável pelo primeiro caso de reinfecção no estado e, ao que se sabe até agora, essa mutação é original da região. Mutações identificadas na África do Sul e na Inglaterra estão sendo associadas a um aumento de transmissão.

Numa tentativa desesperada para conter o caos em Manaus, única das 62 cidades a contar com UTIs, o governador Wilson Lima (PSC) determinou que a Polícia Militar (PM) protegesse as portas das unidades de saúde. Teme-se a invasão de pacientes com o novo coronavírus.  Nem a chuva forte que caía desde as primeiras horas desta quinta-feira impediu que centenas de pessoas fossem às portas dos hospitais buscar por atendimento ou notícias de seus parentes mortos. Muitos foram hostilizados por policiais.

O clínico-geral José Francisco dos Santos, diretor do Simeam, condenou o uso da força policial. “Você passa a promover que a família passe a agredir o médico. Passa o entendimento de que as pessoas não entrem nos hospitais e nas unidades básicas de saúde, porque o médico ‘não quer’ que ele entre”, criticou. “Elas não entram, porque não tem leitos. Falta oxigênio, falta tudo. Temos que defender a classe médica, pois estamos trocando as nossas vidas em função de outras vidas.”

Duas outras medidas oficiais foram tomadas nesta quinta-feira. Foi decretado o toque de recolher das 19 às 6 horas durante 10 dias (até 23 de janeiro). Como os estoques de oxigênio estão acabando, o governo estadual informou ainda que serão transferidos 235 pacientes de Covid-19 de Manaus para hospitais da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). As unidades estão localizadas nos estados do Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Goiás e Distrito Federal (Leia aqui).

Wilson Lima disse que, para atender a demanda dos hospitais públicos e privados, as fornecedoras White Martins, Carbox e Nitron precisavam entregar 76.500 metros cúbicos (m³) diariamente. No entanto, as empresas só conseguem fornecer 28.200 m³/dia. “Para sanar o déficit de 48.300 m³ diários, a operação está buscando em Fortaleza e São Paulo o insumo para trazer em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB)”, disse. O governador não informou quantas pacientes morreram asfixiados nos hospitais de Manaus.

De acordo com a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS), nesta quinta-feira (14), foram diagnosticados 3.816 novos casos de Covid-19, totalizando 223.360 pessoas contaminadas pelo vírus no estado e 5.930 mortes.

 

“Minha avó perguntou por que não trouxe o ar dela”, desabafou Francisco Netto

Manaus se transformou em um surreal mercado de venda e aluguel de cilindros e recarga de oxigênio para pessoas que estão em tratamento de Covid-19 dentro de casa ou nos hospitais públicos. O paciente precisa de oxigênio quando apresenta insuficiência respiratória e falta de ar. No tratamento do coronavírus é introduzida a ventilação mecânica no paciente – suporte que ajuda a suprir a carência de oxigênio. Daí a necessidade urgente do abastecimento de cilindros do oxigênio em Manaus.

Com a falta de oxigênio, pelas redes sociais, é possível encontrar propaganda para aluguel e venda dos equipamentos. Em um dos anúncios, era possível até hoje (14), pela tarde, alugar um cilindro de oxigênio entre R$ 4.750,00 a R$ 10.000,00 com carga 50 litros, para 15 dias. Um 1 cilindro pequeno estava custando até 800,00 por dia. A venda estava sendo feita em parcelas de até três vezes no cartão de crédito. “Agora a noite em Manaus acabou o oxigênio, não tem mais nem nas fábricas”, disse um fornecedor à reportagem. 

O empresário Francisco da Chagas Netto, 41, disse à Amazônia Real que corre contra o tempo para salvar a avó, Maria de Nazareth Araújo, de 85 anos, e tia, Jacqueline Araújo Cruz, de 48, ambas acometidas pela Covid-19. Em desespero, ele cruza Manaus em busca de um lugar onde possa reabastecer os cilindros de oxigênio que mantêm as duas vivas. 

“É complicado. É uma sensação de impotência. Dinheiro não vale bosta nenhuma numa hora dessas. Ninguém te vende”, desabafou Francisco. A avó dele manifestou a doença após o Natal, no domingo 27 de dezembro. “Na segunda-feira, ela sentia os sintomas. Entramos com ivermectina, azitromicina, vitamina D e antigripal. Na sexta-feira (dia 1º de janeiro) a levamos na Upa do Campos Sales. Disseram que ela não tinha critérios de internação e mandaram voltar para casa. Chamamos um médico particular. Ele pediu uma tomografia e exames de sangue. Fizemos a tomo à noite e os exames de sangue pela manhã.”

O resultado do exame foi um baque para toda a família de Chagas Netto. Maria de Nazareth já estava com 80% do pulmão comprometido. A tia de Francisco, Jacqueline, é surda/muda, tem transtorno do espectro autista, além de outras complicações neurológicas. Ela também contraiu o novo coronavírus e já tem 60% de seu comprometimento pulmonar.

“Estamos na luta com as duas. O médico pediu oxigênio urgente. Compramos”, relatou Francisco, que trocou um cilindro de sua oficina de pintura de veículos automotores, por um cilindro medicinal, capaz de suportar 24 horas. Além disso, conseguiu comprar um cilindro menor.

“Contratamos uma fisioterapeuta, compramos o BiPAP. Elas estavam melhorando, mas agora não consigo mais recarregar o cilindro com oxigênio. Com a saturação baixa, não sei o que poderá acontecer”, desesperou-se.

Francisco estava recarregando o cilindro maior por R$ 350 e o menor por R$ 150. “São R$ 500 todos os dias só com oxigênio. A fisioterapia custa R$ 200 para cada uma por dia, já são R$ 400. Os exames custaram R$ 445 para cada um, e a visita diária do médico custa R$ 800 também por dia”, enumerou.

Depois de rodar o dia atrás de oxigênio e voltar de mãos vazias, o empresário Francisco desabou. “É o sentimento de tragédia. Ver quem você ama deitada numa cama, precisando de oxigênio para sobreviver e você não consegue resolver. Aí você vê a sua avó perguntando por que que você não trouxe o ar dela… É muito triste. Triste demais”.

 

Manaus “Por um respiro”

Ao perceber a situação caótica que as unidades de saúde Manaus se encontram, onde pacientes estão morrendo por asfixia pela falta de oxigênio, pessoas na internet iniciaram uma mobilização social para a compra de cilindros e equipamentos respiratórios por meio de doações e vaquinhas online. A artista manauara Karine Magalhães e outras seis pessoas iniciaram a campanha “Manaus Por Um Respiro”, na tarde desta quinta-feira (14).

“A gente decidiu juntar esse dinheiro para a compra dos cilindros com oxigênio e levá-los até os hospitais, UBS e pessoas que estão se tratando em casa, em internação domiciliar”, disse. As doações servirão também para a compra de reanimador adulto, fluxômetro e umidificador de oxigênio, máscara de alta concentração, máscara VNI e conexões tipo Y. 

Segundo Karine, os integrantes da campanha ainda não haviam encontrado um fornecedor que oferecesse o cilindro com oxigênio. A compra estaria sendo feita separadamente. Até as 19h31, a campanha já havia arrecadado R$ 805,00 mas de acordo com levantamento feito pelos integrantes, um cilindro pequeno de oxigênio, está custando R$ 4.000 e um grande, R$ 10.000. “Recebemos ligações de parentes de pacientes que estão internados em hospitais e em casa e estão precisando do oxigênio”, concluiu.

 

Por que Manaus chegou ao caos?

Para o epidemiologista da Fiocruz da Amazônia, Jesem Orellana, o Amazonas precisa  quebrar a cadeia de transmissão do novo coronavírus, pois a atual situação só agrava a demanda de leitos. “A epidemia jamais foi controlada. Na verdade, ela foi largamente negligenciada. Você viu a prefeitura de Manaus ou o governo do Estado fazendo uma campanha de rastreamento de infectados pela covid-19? Nunca fez. Aí que está a omissão na atenção básica, na prevenção. Não adianta abrir leito de hospital para as pessoas morrerem ou estarem ali sequeladas”, criticou.

“O alerta é o seguinte: ‘se não prolongaram esse decreto ou decretarem um lockdown rigoroso na cidade de Manaus, esse esforço que está sendo feito vai ser jogado no lixo, porque ele vai adiantar muito pouco para diminuir a curva do contágio e menos ainda para reduzir a demanda hospitalar’”, disse Orellana.

Manaus chegou aos caos e em crise humanitária por fatores pré-epidemia, explicou o epidemiologista. A capital do Amazonas padece de uma histórica precariedade da infraestrutura médica hospitalar, desde a atenção básica, quando se poderia atuar na prevenção. “A maioria das pessoas que não aderem às medidas vive em condições precárias de habitação. São pessoas que dependem da informalidade”, disse. 

Orellana citou o último levantamento do IBGE, que apontou que 53% da população de Manaus vive em condições precárias de moradia. “Esses são fatores pré-pandemia. Os outros fatores da epidemia são o fato de o governo do Amazonas e as prefeituras jamais terem, especialmente Manaus, aderido a campanhas de testagem em massa. (Colaboraram Kátia Brasil e Iris Brasil). Fonte: https://amazoniareal.com.br