Por que parcela da população precisa acreditar tanto na salvação para resolver as incertezas de sua existência social?

Joel Birman

RIO- João de Deus está rapidamente perdendo a aura que o inseria no território do sagrado, lançado inexoravelmente no território dos mortais. A figura civil de João Teixeira de Faria passa a ocupar a cena de sua existência profana, perseguido pela Justiça. Os territórios de Abadiânia e da Casa Inácio de Loyola perderam o colorido de salvação, se esvaneceram na tonalidade cinzenta da existência mundana. Nada mais será como antes, João de Deus perdeu, em poucos dias, pelas múltiplas denúncias de abuso sexual de seus fiéis seguidores, sua legitimidade como curador, construída num longo processo teológico-espiritual, a matéria-prima para forjar seu carisma. Processo similar ocorreu com o guru Prem Baba, também denunciado por abusos sexuais.

Não interessa destacar as dimensões jurídicas desse acontecimento, mas sublinhar como a produção na crença da salvação se institui facilmente na sociedade brasileira. Por que parcela significativa da população brasileira precisa acreditar tanto na salvação, pela mediação do sagrado, para resolver as incertezas de sua existência social, movida pela precariedade? Esta indagação se impõe com urgência, toca nas vísceras da brasilidade, sempre acossada pela insegurança, nervos à flor da pele.

Não coloco em questão que João de Deus tenha o poder de curar. Estou longe de duvidar dessa possibilidade, constatada inúmeras vezes por diferentes beneficiários de suas práticas espirituais. Há dias alguém dizia que devia a João de Deus a cura de um câncer, considerado incurável pela medicina científica, mas que ele merecia ser punido pelos abusos dos que a ele confiaram seus corpos frágeis. Enfim, como dizia Shakespeare, em “Hamlet,” existem mais coisas entre o céu e a Terra do que imagina a nossa pobre filosofia.

Ocorreu com João de Deus o que já aconteceu com inúmeros personagens que acreditaram no poder que lhes foi outorgado pelo Outro, e passaram a se achar acima do Bem e do Mal, podendo fazer o que quisessem e bem entendessem. Se esqueceram do óbvio, que qualquer poder é sempre provisório e circunstancial, de forma que o desinvestimento do poder ocorre num estalar dos dedos, como a saga de João de Deus nos demonstra.

Desde meados do século XIX a cura pela hipnose e pela sugestão fez a sua emergência triunfal no Ocidente, tendo nas práticas terapêuticas de Mesmer, no final do século XVIII na França, sua matriz. O que estava em pauta era o poder da influência de um líder carismático associado à crença presente numa massa de seguidores no seu poder curativo.

Com Freud, a psicanálise se inscreveu criticamente nessa tradição, ao enunciar que a transferência da figura do analisante para o analista conferia a esse tal poder, sustentado numa relação de amor, a saber, o amor de transferência. Porém, é necessário que os seguidores sustentem essa crença com vigor, sem o que a figura de líder não se mantém de pé. Com essa leitura Freud enunciou uma teoria do poder, em “Psicologia das massas e análise do eu”, para interpretar a manutenção da hierarquia, nas instituições militar e religiosa, assim como do poder político. Por isso mesmo, pode ser inscrita na leitura das disciplinas constitutivas da modernidade, tal como Foucault empreendeu em “Vigiar e punir”.

Se o processo de servidão voluntária foi delineado no século XVI com La Boétie, o que passou a imperar desde o século XIX foi a servidão involuntária, baseada no poder disciplinar e no inconsciente, o que implica dizer que a crença na salvação se deslocou decididamente do campo da religião para o da ideologia, que, como religião secular da modernidade (Gauchet), passou a realizar decisivamente a gestão das relações de poder. Fonte: https://oglobo.globo.com