Roseli Fischmann é professora livre-docente sênior da Faculdade de Educação (FE-USP)

A longa trajetória rumo à conquista dos direitos humanos, e especificamente dos direitos civis, teve em 1968 um de seus principais marcos, sublinhado, especialmente em solo norte-americano, por acontecimentos dramáticos. Os assassinatos do doutor Martin Luther King Jr., em 4 de abril de 1968, e do senador Robert Kennedy, em 5 de junho de 1968, banharam com sangue uma luta múltipla, diversa, que já vira antes (e, infelizmente, continuaria a ver depois) ser derramado sangue de tantos que tiveram suas vidas ceifadas.

King e Kennedy compartilharam a luta pelos direitos civis, mas também (ou exatamente por isso) uma confiança no pacifismo que fez com que se opusessem, por exemplo, à guerra no Vietnã. Colocar o foco sobre o assassinato de Luther King, assim, é tratar de uma determinada vertente do combate ao racismo, diferente da adotada por Malcolm X ou pelos Panteras Negras. Nesse sentido, Bob Kennedy tinha proximidade com Luther King na abordagem, diferindo dele, porém, por atuar no contexto do Estado norte-americano, como senador, na escuta dos movimentos sociais de então, que tinham, em King, uma de suas mais notáveis lideranças.

Ao mesmo tempo, trazer ao centro da reflexão a liderança do dr. King é reconhecer que 1968 aconteceu, nos ganhos e nas perdas, como resultado de árduo trabalho realizado nas décadas anteriores por movimentos sociais contra o racismo, que se estruturaram em diferentes organizações, com pautas de mobilização criadas e desenvolvidas coletivamente. Semelhantes pautas reconheciam o caráter histórico do combate ao racismo e, por isso, as dificuldades ali implicadas, em especial a importância de trabalho contínuo, que deveria perdurar, sendo suas conquistas graduais, levando à definição de prioridades para cada momento.

Como é sabido, Martin Luther King Jr. era pastor da Igreja Batista. O estudo de suas prédicas e discursos demonstra a trajetória de um líder que vai se renovando ao longo do caminho, pelo caminhar que um pouco escolhe e outro tanto é levado a fazer (para lembrar Antonio Machado). De modo sumário, suas primeiras falas trazem forte entonação religiosa que, aos poucos, vai sendo matizada pela perspectiva mais especificamente ética para chegar finalmente à abordagem dos direitos civis. São exemplos de como uma visão religiosa pode evoluir, em abrangência, para a compreensão e prática de como dialogar com o Estado laico, como se propõem a ser, por sua Constituição, os Estados Unidos da América.

Por exemplo, no início de sua vida pública tratava a discriminação racial como pecado, em especial no mandamento cristão de “amar ao próximo como a si mesmo”. Assim, o combate ao racismo seria um dever dos cristãos, o gesto imprescindível e irrenunciável para proteger os irmãos pecadores racistas de si mesmos, para que não mais pecassem.

Com o tempo e a ampliação dos grupos a quem se dirigia, não apenas da igreja da qual era pastor, nem somente de cristãos, atinge um patamar de discurso que expressa a sua própria consciência ampliada. O combate ao racismo se coloca para ele não mais (ou não mais apenas) como um “dever de cristão”, mas passa a ser encarado e tratado como direito civil. A transição que faz, então, é de tratar a discriminação racial não mais, ou não apenas como pecado, mas na categoria que lhe cabe: como crime.

A menção anterior às décadas que prepararam o ano de 1968 e às que o sucederam pode agora ser exemplificada, assim como o sentido de haver uma pauta de reivindicações e uma lista de prioridades no combate ao racismo nos Estados Unidos. Dentre as prioridades, à educação das crianças foi atribuído o primeiro lugar, acompanhado pelo direito de ir e vir, ligado ao direito ao trabalho.

Como se sabe, a segregação racial vigorou como lei em muitos estados norte-americanos, restos e sequelas do final da escravidão a que chegaram por meio de guerra civil. Ora, o regime segregacionista estabelecia que houvesse escolas para crianças brancas e escolas para crianças negras, rigidamente separadas, sem qualquer exceção. Sucede que para algumas crianças negras, estudar na escola que lhe era permitido pela segregação, significava viajar para outra cidade, independentemente de sua idade ou condição física e psicológica. Contra esse estado de coisas, a família de Linda Brown, então uma menina de sete anos, decidiu lutar.

Matriculada em uma escola “para negros”, Linda seguiu no início daquele ano letivo, em setembro de 1950, levada por seu pai, Oliver Leon Brown, pastor da Igreja Afro-Metodista Episcopal, para a escola “para brancos”, próximo à sua casa, com toda a naturalidade. Sendo impedida de frequentar a escola “legalmente”, nesse caso, pela lei da segregação racial, seu pai decidiu entrar com processo na Justiça, que ficou historicamente conhecido como Brown v. Board of Education of Topeka, Kansas. Foi apoiado pela National Association for the Advancement of Colored People – NAACP, cujos advogados o representaram. Observe-se que a NAACP era uma das muitas associações que se organizaram em torno do combate ao racismo pela via judicial, e que se ligavam aos grupos liderados por Luther King. Finalmente, em 1954, os litigantes chegaram à Suprema Corte norte-americana, que acolheu o caso, dando vitória à família Brown. Em sua decisão, a Suprema Corte reconheceu que toda criança tem o direito de ir à escola pública em condições de igualdade às demais, sem qualquer obstáculo ou empecilho, sem qualquer discriminação, vitória essa que impôs o fim da segregação racial nas escolas de todo o território norte-americano. Era, de fato, a primeira quebra na segregação racial, obtida junto à Justiça, portanto por meios pacíficos, reconhecendo a possibilidade de mudança nas leis, mudança no Estado.

O segundo exemplo refere-se à mobilização havida para o fim da segregação racial no transporte público, praticada mediante separação de lugares nos ônibus, ficando para os negros os assentos no fundo do veículo, em número bem menor do que os assentos reservados, na frente e no meio, para os brancos. Na prática, era frequente que os negros e negras viajassem amontados, em pé, enquanto assentos “para brancos” permaneciam vazios.

A mobilização já vinha sendo pensada, quando, em 1955, em Montgomery, cidade do Alabama, a sra. Rosa Parks, costureira, decidiu entrar pela porta da frente e sentar-se em um dos bancos reservados “para brancos”. Quando tentaram retirá-la, argumentou que estava cansada e os bancos, vazios, mas apenas obteve como resposta ser atirada do ônibus para fora, processada e condenada por violar a lei, no caso, da segregação racial em transportes públicos. Ciente da força econômica representada pela comunidade negra como usuária do transporte público, que dependia das passagens que pagavam para seguir operando, foi organizado um boicote aos ônibus, liderado pessoalmente por Martin Luther King, ainda jovem. Iniciado quando Rosa Parks sofreu condenação, a população negra deixou de tomar ônibus, indo e voltando do trabalho apenas a pé. Multidões de trabalhadores negros e negras tomavam a beira das estradas e ruas, em grupos, saindo mais cedo de casa e voltando mais tarde, pelo tempo para deslocamento. O boicote durou mais de um ano, sendo interrompido apenas pela Suprema Corte que decidiu que era inconstitucional a segregação racial nos transportes públicos. Mais uma vez a conquista do direito pela mobilização e pela mudança da lei tiveram sucesso.

Esses dois exemplos indicam mobilizações havidas cerca de dez anos antes de 1968, e que haviam impulsionado o combate ao racismo pela via pacífica. Ou melhor, como inspirado em Mahatma Gandhi e, ele mesmo, em Henry Thoreau, pela via da desobediência civil e pela resistência não violenta, advinda da tradição indiana. A conjunção do pensamento de Thoreau com a tradição indiana foi obra de Gandhi com largo e duradouro impacto. Contextualizando, trata-se da influência de Gandhi na primeira metade do século XX, que tantas vezes jejuou pela independência da Índia do domínio britânico, liderando o povo indiano para que a resistência se fizesse sem violência.

Nos anos 1960, à resistência não violenta juntou-se um adjetivo: ativa. Ou seja, não se tratava de um pacifismo inerte, ou de uma ação não violenta passiva. A liderança de Martin Luther King foi marcada por essa disposição, reunindo em torno do combate ao racismo uma diversidade de participações: cristãos e não cristãos, ateus, políticos, gente que despertava para o poder da mobilização. Não à toa o poder de sua liderança atraiu o ódio mortal daqueles que o viam como impedimento à continuidade do racismo e da segregação racial, da guerra no Vietnã.

O que parecia um movimento em lento amadurecimento desde antes da Segunda Guerra Mundial, mais concentrado a partir do fim dos anos 1940, fortalecido e conquistando vitórias nos anos 1950, vê, em 1968, o assassinato de Luther King e de Kennedy, seu interlocutor na política partidária, como um momento terrível.

Mais ainda, os ecos da resistência não violenta gandhiana inspiravam toda a luta contra a guerra no Vietnã, além da influência da cultura indiana sobre o pensamento que levou a 1968, fossem as batas indianas na vestimenta, mais exteriores, fossem práticas como a meditação, o yoga, o uso de incensos fora das igrejas, a música tanto no meio hippie como em meio à juventude em geral. Beatles e seu guru, que depois pateticamente chamaram the fool on the hill, Ravi Shankar e sua cítara que então encantava, deixando as filhas Norah Jones e Anoushka Shankar para deleite dos ouvidos do século XXI.

Ciente da força econômica representada pela comunidade negra como usuária do transporte público, que dependia das passagens que pagavam para seguir operando, foi organizado um boicote aos ônibus, liderado pessoalmente por Martin Luther King, ainda jovem.

Mas em meio a toda a inovação e contracultura de 1968, pairavam também outras abordagens contra o racismo, que acharam espaço com o assassinato de Luther King. Foram muitas forças coletivas, algumas a citar de modo particular. A Nação do Islã, que primeiramente acolheu Malcolm X quando era jovem presidiário, promovido a seu principal líder, para depois assassiná-lo, em 1965, quando, desencantado com os rumos da organização, decidiu pregar o Islã sem violência, estava pronta para seguir a proposta que vinha de antes, de separação absoluta entre brancos e negros, com a primazia negra e masculina obtida pela via da violência. O Partido dos Panteras Negras, de orientação marxista, aliado ao Partido Comunista, em pleno auge da Guerra Fria, pregando a ação armada como via de libertação racial, ao mesmo tempo que se impõe na propagação de imagens identitárias indeléveis, como o cabelo black power, une-se a outros grupos, especialmente nos campi universitários, em manifestações violentas, em 1968, obtiveram novos seguidores, que traziam o rancor da oportunidade histórica perdida com o assassinato de Martin Luther King. Angela Davis, atualmente professora universitária centrada em questões de gênero e raça, tornou-se o nome mais lembrado dos Panteras.

Cinquenta anos depois, 1968 não acabou. As lutas pela dignidade humana que antecederam o icônico ano fazem-se necessárias como jamais o foram, no Brasil e no mundo. Não apenas pelo que ressurge, como por tudo que se vê a desprezar a história, dela tentando fazer terra arrasada e, de 2018, um marco incivilizatório, ignorando os cinquenta anos que o precederam e, mais distante, os cinquenta anteriores a 1968, que o prepararam. O que se contará de 2018 daqui a meio século? Será o ressurgir do que parecia derrotado, ovos ainda mais terríveis que a serpente terá gerado, ou haverá uma fresta por onde caminhar e encontrar novas conquistas que dignifiquem o ser humano? Fonte: https://jornal.usp.br