JULLIANA DE MELO

Foram 45 facadas. Lentamente, a cada golpe desferido, um ano de vida era retirado da agricultora Ivonete Maria dos Santos. Morreu aos 45 anos, brutalmente assassinada pelo companheiro, Severino Antônio Vieira, 54, na calçada de casa, em São Joaquim do Monte, Agreste de Pernambuco, no dia 18 de março de 2018. As imagens da sua morte, vista em plena luz do dia pelos vizinhos, foram gravadas em vídeo, fotografadas, e compartilhadas nas redes sociais e grupos de WhatsApp. Assim como o linchamento do agressor, que aconteceu logo após o assassinato da esposa. Uma violência sem tamanho, que gerou views e revolta. E mais violência.

O que logo chama a atenção na morte de Ivonete, ocorrida em um domingo à tarde após discussão banal regada a álcool, é que a população viu o crime acontecer e não se mobilizou para impedir o trágico desfecho. “As pessoas não fizeram nada por medo. Depois se juntaram e foram atrás dele, por revolta”, contou a delegada Gabrielle Nashida, que tinha assumido o posto na delegacia da cidade há menos de dois meses. Foi o primeiro caso de feminicídio do ano no município, marcado pelos altos índices de criminalidade.

A distância, impressionados com a cena dantesca das víceras de Ivonete expostas na rua, alguns vizinhos chegaram a gravar o crime. Entre a banalização do corpo daquela mulher e a espetacularização do assassinato, compartilharam tudo nas redes sociais. Rapidamente e sem cortes, os últimos minutos de vida de Ivonete já estavam sendo exibidos nos blogs do interior do Estado e programas policiais de TV. “Este é um fenômeno novo, que chega com a grande exposição nas redes sociais. Postar a foto da vítima, para ter audiência (likes e curtidas), tornou-se mais importante do que prestar socorro. A pessoa está mais preocupada em informar pelas redes que estava presente naquele momento, mesmo que seja uma calamidade”, destacou a coordenadora de projetos do Instituto Maria da Penha, Conceição de Maria.

Um dia antes do assassinato de Ivonete, a dona de casa Tatiana Apolônia da Silva, 34, gritava por socorro. Era sábado, e ela tinha acabado de chegar de moto com o companheiro, o marchante Cassiano Gonçalves do Vale, 39, ao apartamento no Condomínio Luís Cecchin, no bairro Lagoa Azul, zona urbana de Limoeiro, também no Agreste. O imóvel da família estava desocupado e naquele dia virou o endereço da sua morte. Apesar de ter pedido ajuda, ninguém fez nada.

Em depoimento na delegacia municipal, testemunhas disseram que as brigas entre o casal se intensificaram após um boato de traição. Contaram que Cassiano já tinha falado publicamente que um dia iria matá-la e depois se matar. Mas ninguém deu ouvidos. Já de noite, um vizinho chamou por ele, pedindo para que guardasse a moto porque a área era perigosa. Foi quando se deparou com os corpos do casal no corredor, entre a sala e os quartos. Antes da polícia chegar, curiosos já tinham entrado no apartamento e fotos da cena do crime também circularam pela cidade.

Após atingir a companheira com duas facadas nas costas e no rosto, Cassiano Gonçalves cortou a própria garganta, morrendo ao lado da mulher com quem teve quatro filhos e conviveu por quase 20 anos. “Ele era marchante e sabia o que estava fazendo, onde atingir o corpo de forma fatal”, disse a delegada Maria Betânia de Freitas Tavares, que investigou o crime, com fortes indícios de ter sido premeditado. Além da faca suja de sangue, na mesa da sala do apartamento, foram encontradas uma pedra e uma lima de amolar facas, aparentando terem sido usadas há pouco tempo. O inquérito foi concluído nove dias após o assassinato, também como feminicídio.

“A cultura machista ainda é muito forte, principalmente no interior, onde parte da população ainda julga a vítima, dizendo que ela mereceu, que procurou aquele fim trágico. É o que tentamos desconstruir nas novas gerações em atividades na escola”, ressaltou a secretária de Desenvolvimento Social e Cidadania de Limoeiro, Cristiane Barbosa. “A morte de Tatiana não foi provocada porque ela estaria traindo, mas porque Cassiano tinha ciúmes e sentimento de posse sobre a vida dela”, reforçou a delegada Maria Betânia.

DENÚNCIAS

Segundo Conceição de Maria, o componente cultural também pesa na decisão de denunciar uma agressão contra a mulher, uma vez que a violência doméstica ainda é vista como briga de casal. “O sentimento de que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher é muito forte, mas a sociedade precisa saber que existe a denúncia anônima e que pode ser feita por terceiros. Se tiver acontecendo uma agressão, principalmente com risco iminente de morte, é importante ligar imediatamente para a polícia no 190”, reforçou. E ensina que, em vez de sensacionalizar o crime, a denúncia é sempre mais efetiva do que qualquer filmagem ou registro em foto. “Quando você liga para a polícia você dá conhecimento ao Estado sobre o que está acontecendo. E se a vítima, depois da denúncia, voltar pra casa e for assassinada pelo companheiro, essa morte é de responsabilidade do Estado.”

Para a jornalista e cofundadora da rede Mete a Colher Renata Albertim, o silêncio é uma forma de negar a defesa à mulher. “A sociedade não vê que, quando fica calada, ela escolhe o lado do agressor. É preciso acolher esta mulher, mas respeitando a decisão dela de denunciar, porque dependendo da forma como esta denúncia acontece, e se a vítima permanece na relação, o homem pode se tornar ainda mais agressivo”, alerta. No aplicativo da rede no Facebook, que existe há dois anos, as mulheres são estimuladas a se ajudarem, dando e recebendo apoio emocional, orientação jurídica, e suporte para se inserir no mercado de trabalho. Uma espécie de corrente para ajudar a vítima a sair da relação e quebrar o ciclo da violência. É exclusivo para mulheres, gratuito e pode salvar vidas.

Existe também o serviço Disque 180, do governo federal, um disque-denúncia que encaminha os casos aos órgãos competentes de cada Estado.

LEGISLAÇÃO

O crime por compartilhamento das imagens de cadáveres ainda não está na legislação. Mas, tudo indica, por pouco tempo. A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou no dia 17 de abril a proposta que pune, com prisão, quem reproduz imagens aviltantes de cadáver nos meios de comunicação, na internet e em outras mídias - o que inclui as redes sociais e aplicativos como o WhatsApp.

O projeto, que aumenta em um terço a pena se o responsável pela divulgação tiver acesso às imagens por meio de sua profissão, agora segue para votação em plenário. O advogado Marco Eugle, do escritório Opice Blum, especializado em direito digital, alerta: “Se uma pessoa, por impulso, pega o celular para filmar um assassinato e, por isso, não auxilia a vítima, pode ser enquadrada no crime de omissão de socorro, previsto no Artigo 135 do Código Penal Brasileiro".

Em tempo: as imagens dos assassinatos de Ivonete e de Severino em São Joaquim do Monte serviram de prova e estão nos autos dos inquéritos. Três homens foram indiciados pelo linchamento de Severino. “Eram pessoas conhecidas dele, que se revoltaram com a violência. Todas se apresentaram na delegacia e, por isso, vão responder em liberdade”, explicou a delegada Gabrielle Nishida.

Um minuto e dezessete segundos: neste tempo ele chega, discute, puxa-a pelos cabelos, derruba-a da moto e arrasta-a para o chão. Com uma pedra nas mãos, que parece ser um paralelepípedo, escolhe o detalhe de seu alvo: a cabeça de Jéssica. Uma, duas, três, quatro, cinco pedradas. Sai, desiste, volta. E dá outra pedrada - de novo, na cabeça. Não há mais movimento no corpo de Jéssica, estirado no chão, na rua, na frente da casa onde mora. Robson Gleibson da Silva, ex-marido, deixa o local caminhando, leva a moto dela. Ninguém faz nada: nem o rapaz de chapéu que está sem camisa e assistiu a tudo, nem a moça que passa na rua com uma sacola na mão, nem as duas vizinhas que testemunham o crime da frente de suas casas. Tudo registrado. A dor, a humilhação e a violência estão perpetuadas na gravação da câmera de segurança instalada em uma das casas do bairro Boa Vista, em Bonito, Agreste de Pernambuco.

Jéssica, cujo sobrenome iremos omitir, tem 26 anos.Sobreviveu. Por isso, nem deveria estar nesta série de reportagens que conta, uma por uma, quantas são e como morreram as mulheres em Pernambuco, neste 2018. Mas ouvir Jéssica é escutar o que tem a nos dizer uma sobrevivente. É saber - mesmo que jamais se entenda - o que houve até aquele instante em que um homem, alguém com quem ela manteve uma relação de amor, tentou matá-la com pedradas na cabeça.

“Era carinhoso, pra todo canto que saia era comigo. Eu não tinha nada do que reclamar dele”, conta Jéssica sobre os primeiros tempos do relacionamento com o caminhoneiro, que chegou a ajudá-la a encerrar um casamento anterior. Ela foi casada e tem dois filhos do primeiro marido; ele foi casado e tem três filhos com outra mulher. Os dois viveram juntos durante três anos.

O início do fim do relacionamento aconteceu uma ano depois de terem virado um casal: muitas discussões, as primeiras agressões - verbais, físicas. “Uma amiga veio me contar que ele tinha tentado matar a mãe dos filhos dele. Quebrou o braço dela, que ficou com a cabeça rachada. Pensei: meu Deus, e agora? Como é que eu vou me sair de um homem desse?” A expressão “me sair dele” seria usada por Jéssica muitas outras vezes durante a nossa conversa, que ocorreu em Bonito, poucos dias após ela ter deixado o hospital.

Ele agride, ele pede perdão; ela perdoa, eles voltam - o roteiro já conhecido em outros casos cujo fim é o feminicídio também foi parte da história de Jéssica e Robson. “Ele me pediu perdão por tudo, fez juras que nunca mais ia me tocar. E cai, perdoei”, admite. “Foi meu erro. Era a chance de ‘eu ter me saído’ dele.”

Tempos depois, ela conta, descobriu uma traição. Era, garante, o ponto final. “Eu fui cansando. Chega uma hora que a gente cansa.” Começaram as perseguições: na academia, numa festa, no seu salão onde era cabeleireira - assustando as clientes. “Ele começou botar na mente que eu tinha outro. E me perseguia em tudo quanto era canto. Tinha ciúme das clientes que vinham no salão. Em vez de me aproximar, foi me sufocando mais.”

Domingo de Carnaval. Já separados, Jéssica estava num bar com amigas. Ele chegou, afirmando que ela estaria bêbada. “Disse pra me deixar em paz. Virei as costas e me sentei. Cinco minutos depois, sem esperar, recebi a primeira capacetada. E foram várias.” Ela procurou o Batalhão da Polícia Militar - conta que a delegacia fecha aos finais de semana (o que não é confirmado pelo delegado). Mas o PM que a atendeu teria dito que ela precisaria de testemunhas. “Mas quem era que ia ser testemunha? Ninguém queria”, assegura.

A VÉSPERA

No dia 18 de março, Robson esperou Jéssica sair de uma lanchonete onde estava ajudando o dono, seu amigo. Escondido, tentou atacá-la com uma faca, mas ela conseguiu subir na moto e fugiu. “Já tinham me avisado que ele disse que iria me matar de facada.” Novamente com a delegacia fechada, diz ela, voltou ao Batalhão da PM. “Mas me disseram que todos tinham ido para São Joaquim do Monte. Ninguém poderia me atender.” Na cidade ali perto, também no Agreste pernambucano, naquele dia, o marido havia matado a esposa - a facadas. Depois, foi linchado e morto pelos moradores da cidade.

A narrativa de Jéssica permanece atestando a disposição de Robson de matá-la: “Ele disse que nem Jesus Cristo empatava ele de me matar”. Por isso, ela passou a noite escondida, na casa de conhecidos, num local onde ele nem desconfiasse que ela poderia estar. Na manhã seguinte, dia 19 de março, decidiu ir até a sua casa.

O que se segue é o que registram as imagens, já espalhadas pelo mundo sem porteira das redes sociais: arrastada pelos cabelos, atingida por seis pedradas, abandonada, sangrando, no chão. A câmera havia sido instalada por um policial militar, na frente de sua casa, na mesma rua em que Jéssica morava. Ele não quis dar entrevistas, mas nos disse que havia colocado a câmera ali para tentar proteger a esposa e o filho pequeno quando estivessem só os dois na casa.

Jéssica ainda revela que os moradores tentaram linchar Robson. Com medo, ele teria procurado a polícia. Entregou-se. Foi preso em flagrante, no mesmo dia do crime. “Quando eu vi que fiz uma coisa que não era pra ter feito, que eu vi que eu estava errado, aí eu parei. Se hoje eu pudesse voltar atrás, não fazia isso mais não”, disse, em entrevista para a TV Jornal Interior.

No depoimento à polícia, revelou que queria mesmo matá-la. E que já tinha se envolvido em outros casos de agressão a mulheres. No inquérito, comandado pela delegada Juliana Garcia Melo, foi indiciado por tentativa de homicídio qualificado - aquele que é praticado, entre outras coisas, por motivo fútil, com crueldade e sem chance de defesa para vítima. Está no Presídio Juiz Plácido de Souza, em Caruaru.

CULPA

A violência presente em Jéssica se enxerga: ela tem uma cicatriz perto da boca e muitas outras no couro cabeludo, suturadas no Hospital da Restauração, no Recife, onde ficou internada por seis dias. Não lembrava das pedradas, da agressão, de nada. “Minha família me disse que tinha sido um acidente de moto. Só fui saber da verdade em casa, vendo o vídeo que muita gente mandou pra mim”, revela. “Foi a mão de Deus na minha vida. Porque hoje não era pra eu estar viva.” Conta ainda que tem muitas dores de cabeça e que é muito difícil olhar-se no espelho.

A violência presente em Jéssica também se sente: nos gestos, na mágoa, no desafio de entender a sua própria história. Durante quase duas horas de conversa, apesar de muito doída, ela quase não chorou. A emoção veio em dois momentos. Quando se tenta descobrir por que, mesmo sendo vítima, há tanta culpa em sua fala. Jéssica chora diz: “Eu me sinto culpada de ter acreditado nele. Não aceito isso. Não aceito. Não confio mais em homem nenhum. Ele acabou com a minha vida”.

Chora ainda mais quando precisamos falar de seu futuro. “Estava com um plano, voltei a estudar - que eu tinha parado a minha vida. Ia fazer um concurso pra ser polícia. E ele matou tudo. Não sei se eu vou conseguir. Seja o que Deus quiser. Se for da vontade de Deus… Se não for isso vai ser outra coisa. Porque eu estou viva. E vou lutar na minha vida até o fim.”

Às mulheres que compartilham, hoje, o que Jéssica já viveu, ela aconselha: “Não confie. Procure seus direitos. Se tiver chance de correr, vá pra outro canto. E corra. Porque a vida é única. A gente tem que se amar primeiro. Isso não é amor.”

ESTUPRADA POR QUEM DEVERIA PROTEGÊ-LA

Nas mãos, a mochila e o caderno em branco. No rosto, a dor de uma mãe que não verá a filha crescer e realizar o sonho de ser professora. Mas a angústia maior da dona de casa Mileide Maria de Lima é descobrir que o perigo estava dentro de casa o tempo inteiro. Maína Maria Marcolino de Lima, 13 anos, foi morta no dia 12 de fevereiro, em Igarassu, no Grande Recife. Encontrado dois dias depois, o corpo nu, estuprado e amarrado estava no fundo de uma cacimba. O único suspeito é Izaías Bezerra dos Santos, 37, padrasto da menina. Para a polícia, o crime teve motivação sexual. Como milhares de crianças e adolescentes, Maína acabou sendo abusada e assassinada pela pessoa que deveria protegê-la.

Naquela segunda-feira, a adolescente, que morava com o pai, passou a tarde com a mãe e dois irmãos na propriedade onde a dona de casa vivia com Izaías, na zona rural do município. Por volta das 17h30, Mileide, que desconhece a própria idade, mandou o companheiro deixar em casa as crianças, que estavam com o pai. Izaías levou os dois menores primeiro e Maína, sozinha, por último. Mas a menina nunca chegou ao destino. No celular de Izaías, a polícia encontrou fotos da garota nua e desacordada, possivelmente morta. O padrasto foi localizado por populares e espancado até a morte no dia 16 daquele mês.

Izaías era o primeiro marido de Mileide, pai da filha mais velha da dona de casa, de 18 anos. O relacionamento acabou ainda durante a gravidez. Mileide, então, casou-se novamente e teve outros cinco filhos. Há menos de um ano, no entanto, havia reatado com o ex. “Depois que aconteceu, teve gente que me criticou por ter voltado para ele. Era uma pessoa boa para mim e para meus filhos, ninguém imaginava que uma coisa dessas aconteceria”.

As investigações, conduzidas pelo delegado David Medeiros, foram concluídas no dia 23 de março. O inquérito indiciou o padrasto por homicídio, com as qualificadoras de feminicídio, estupro, morte por asfixia e ocultação de cadáver. Agora, o caso está em análise no Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que deverá arquivá-lo, já que o suspeito foi linchado.

Um levantamento realizado em 2014 (o mais recente) pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra o submundo dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes no País, com base em dados do Ministério da Saúde. Entre as vítimas de estupro, mais de 70% têm até 17 anos. O maior índice (50,7%) é registrado entre os menores de 13 anos, como Maína. As vítimas são do sexo feminino em 81,2% dos casos dessa faixa etária.

Ainda de acordo com o estudo, a maioria dos agressores é do sexo masculino – 92,55% em casos que envolvem crianças e 96,69% nos registros de violência contra adolescentes. 24,1% dos abusadores de crianças são os próprios pais ou padrastos e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima. “Por isso, a dificuldade de denunciar acaba sendo maior. Apesar dos números mostrarem que 50 casos acontecem diariamente no País, acreditamos que exista subnotificação”, argumenta Victor Graça, gerente-executivo da Fundação Abrinq, que atua com crianças e adolescentes no País. Fonte: http://produtos.ne10.uol.com.br