“Francisco vê a Igreja como um hospital; seus inimigos a veem (como Lutero fez) como uma espécie de fortaleza contra erros e infiéis. O importante, porém, é que Francisco, depois de anos de discussão, está vencendo o debate”, afirma, em editorial, o jornal inglês The Guardian, 25-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Um grupo de clérigos conservadores acusou o Papa Francisco de heresia pelas suas tentativas de liberar o trato da Igreja às pessoas divorciadas. Isso levanta uma questão interessante: por quanto tempo um papa deve estar morto antes que as suas opiniões possam ser ignoradas com segurança?

Para muitas pessoas, a resposta é “por tempo algum”: não são apenas os humanistas, os muçulmanos e os protestantes, mas também a grande maioria dos católicos do mundo que dão pouca atenção à doutrina católica quando eles não concordam com ela. A direita católica ignora mais de 100 anos de um consistente ensino papal contra os excessos do capitalismo, junto com denúncias mais recentes da pena de morte, das guerras de agressão e da destruição ambiental. A esquerda católica ignora os ensinamentos do papa sobre a sexualidade – e todos ignoram a proibição da contracepção.

Os próprios papas, no entanto, devem levar seus antecessores muito a sério, mesmo que nenhuma das partes esteja escrevendo infalivelmente. As encíclicas papais soam como documentos legais, reforçados com notas de rodapé para provar que a doutrina não mudou, e que eles estão apenas repetindo o que seus antecessores queriam dizer, mesmo quando contradizem o que foi claramente dito.

Esses magníficos roupões escondem algumas coisas fantasiosas às vezes. É um artigo de fé – literalmente – que a doutrina nunca pode mudar, apenas se desenvolver, e o olho da fé pode ver claramente as sutis diferenças entre mudança, desenvolvimento e decadência.

Assim, as denúncias do século XIX sobre a democracia e a liberdade de pensamento e de consciência são agora ignoradas, mas a recusa do Papa João Paulo II de admitir as mulheres ao sacerdócio parece que vai ficar de pé por mais alguns séculos, pelo menos.

O que dizer, porém, da denúncia igualmente clara do Papa João Paulo II dos casais divorciados em segunda união que recebem a comunhão, reafirmada com força apenas 14 anos atrás? “Aqueles que persistem obstinadamente no pecado grave manifesto”, como ele se referiu aos divorciados recasados, devem ser banidos da participação no rito central da Igreja.

Mesmo na época, isso foi amplamente ignorado – a sua carta é uma daquelas leis a partir das quais os historiadores podem concluir que o comportamento banido era lugar-comum. Deve haver poucas comunidades católicas no Ocidente sem divorciados em segunda união que comungam, e todos sabem disso. Afastá-los do altar causaria um escândalo público, e isso também é banido. Portanto, é improvável que a carta tenha qualquer efeito sobre os fatos in loco.

Mas os esforços do papa atual, Francisco, para reverter a política dos seus antecessores provocaram uma reviravolta vigorosa. Se ele está mudando a doutrina, como seus oponentes acusam, ou meramente a interpretação da doutrina, como afirmam seus defensores, não há dúvida de que ele quer que a Igreja encoraje algumas pessoas que violam suas normas sobre sexualidade a comungarem. A questão simplesmente não é mais controversa em nenhuma outra Igreja, apesar da clara afirmação de Jesus sobre o princípio da oposição ao divórcio.

Somente a Igreja Católica tem a combinação entre burocracia e autoritarismo que torna tão difícil para o clero aprender com a experiência dos seus rebanhos. A própria ideia de que a Igreja deveria aprender com o mundo e não ensiná-lo é uma afronta para alguns católicos.

O desdobramento mais recente é a publicação de uma longa carta que acusa o papa da heresia pelas suas crenças sobre a segunda união, assinado por 62 clérigos conservadores, que parecem interessados em combater novamente a Reforma 500 anos depois: eles também acusam Francisco de várias heresias luteranas incompreensíveis para a mente não treinada.

Francisco vê a Igreja como um hospital; seus inimigos a veem (como Lutero fez) como uma espécie de fortaleza contra erros e infiéis. O importante, porém, é que Francisco, depois de anos de discussão, está vencendo o debate. Existem 4.000 bispos na Igreja em todo o mundo; apenas um, que tem 94 anos, assinou a carta. Inúmeros católicos podem não concordar com Francisco. Mas ninguém na hierarquia se atreve a ignorá-lo publicamente, pelo menos enquanto ele está vivo. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br