Justin Taylor, Sm.

Antes de prosseguir com a história da Galileia, precisamos fazer uma pausa. Já vimos o bastante para fazer uma ideia do ambiente galileu em que Jesus chamou os primeiros discípulos. Esse ambiente era rural, efusivo e muito diferente em cada lado do lago, o que propicia um cenário para muitos detalhes dos evangelhos. Pode ser útil apresentar uma pequena lista de aspectos característicos que esclareçam o ambiente original de Jesus e dos discípulos.

  1. Nos evangelhos, Jesus vem de Nazaré, mas essa é precisamente a cidade da qual ele sai (mais adiante, examinaremos o significado da palavra “nazoreu” e sua relação com o lugar chamado Nazaré: cap. 5, §II,2). Sua “cidade” era antes Cafarnaum, no lago, não longe de Tiberíades (Mc 2,1; 3,20; 9,33), onde escavações arqueológicas mostraram claramente que antes de Herodes existia uma aldeia de pescadores. Era conhecida de Jesus e ali ele chamou discípulos que eram pescadores e marinheiros experientes.
  2. Falando de modo geral, identificamos uma oposição entre círculos zelotes a oeste do lago de Tiberíades e outros a leste que eram mais submissos. Esse lago desempenha importante papel nas viagens de Jesus, não só do ponto de vista da geografia, mas também pelo simbolismo da água e da pesca. Além do tema de atravessar o lago, as muitas referências ao “outro lado” agora se destacam (ver Jo 6,1 etc.). A maldição simétrica de Betsaida e Corazim (Mt 11,21 par.) inclui os dois lados. A primeira multiplicação dos pães acontece na margem ocidental, com doze cestos (Mt 14,13-34 par.); a segunda, na margem oriental, com sete (Mt 15,32-39 par.). Essas comunicações entre as duas margens não tinham originalmente o propósito de construir uma ponte entre a Decápolis dos gentios e a Galileia judaica, mas entre duas tendências opostas dentro da mesma cultura. A cultura em si era muito fechada e Jesus viera apenas “para as ovelhas perdidas da casa de Israel”
  3. O ambiente de referência é rural e altamente motivado do ponto de vista religioso, com tendências diferentes empenhadas em debate, ou mesmo conflito. A última pergunta que os discípulos fazem a Jesus antes da ascensão (At 1,6) diz respeito à restauração do Reino para “Israel”. A passagem não leva em conta, de modo algum, a verdadeira Judeia dos sucessores de Herodes. É antes sinal de um sonho de libertação tipicamente zelote, que também se encontra na terceira tentação (Mt 4,8ss), no desapontamento dos dois discípulos que vão de Jerusalém para Emaús e na escolha de Barrabás, que era um “sicário”, isto é, não assaltante comum, mas galileu da espécie mais pura, segundo a terminologia de Josefo. Jesus resistiu ao ativismo político e ao messianismo transformado ou, mais exatamente, ele o redefiniu em termos bíblicos apropriados. Por outro lado, enquanto andava pela Galileia e chamava discípulos, ficou bem longe de Séforis e Tiberíades, as duas únicas cidades de fama na Galileia; elas estavam efetivamente sob o controle romano por intermédio da dinastia herodiana. A julgar pela vã tentativa de Josefo, durante a revolta, de unificar a Galileia pelo domínio dos conflitos entre essas cidades e os galileus intransigentes nos distritos rurais vizinhos, está claro que o ambiente de Jesus e dos discípulos assemelha-se ao dos “galileus”. Esse rótulo tinha conotações bem marcantes, religiosas e também políticas, embora Jesus mantivesse sua independência.
  4. O grupo que seguia Jesus era realmente muito variado. Incluía Mateus, o publicano, e Simão, o cananeu (dois que eram, em princípio, opostos, e correspondiam às duas margens do lago) e também Joana, mulher de um alto funcionário de Herodes Antipas, que representa um terceiro enfoque oposto, ligado às classes governantes das cidades, em especial a nova – e escandalosa – capital Tiberíades. Discípulos de João Batista deixaram-no para seguir Jesus. Em Jerusalém, para a Última Ceia, Jesus ocupou uma sala da qual os discípulos não tinham conhecimento, pois estavam ali apenas em peregrinação; assim, Jesus tinha outros contatos fora da Galileia. As controvérsias entre os discípulos de Jesus e os “fariseus” a respeito da purificação antes de comer (cf. Mc 7,1ss; Lc 11,38) mostram que eles compartilham uma cultura religiosa comum ou similar, que também está próxima da dos essênios; por outro lado, ele se opunha aos fariseus, mantendo a primazia da Escritura sobre a tradição oral. Alguns escribas aceitavam Jesus, enquanto outros o rejeitavam; todos defendiam as Escrituras e eram adversários dos fariseus.

Todas essas tendências formam uma imagem do judaísmo da Galileia, na qual dificilmente encontram-se saduceus ou sacerdotes. Jesus atravessou todas essas barreiras, embora ainda permanecesse no judaísmo. Ele até mesmo andou em companhia de “pecadores”, leprosos e prostitutas, mas seus contatos com os gentios não passaram de alguns gestos simbólicos, que eram certamente o máximo que seu ambiente tolerava. Tais gestos eram sempre realizados na frente de espectadores judeus; é esse o sentido do “sinal de Jonas”, que se destinava aos israelitas (até o pior dos profetas é capaz de converter uma capital gentia, enquanto Israel continua resistente). A essa lista de transgressões, podemos acrescentar a visita aos samaritanos, que seguiam o texto escrito e aguardavam um novo Moisés, e que fizeram um reconhecimento de Jesus dos mais solenes. Todos esses cruzamentos de fronteiras reunidos indicam que Jesus não tinha medo de se expor à impureza. Fundamentalmente, ele não tinha medo dos outros.

  1. Assim como João Batista estava cercado de discípulos singulares, também Jesus, que chamou e formou um grupo. Dentro desse grupo, ele era reconhecido como o Mestre (“Rabûni”), mas não era uma escola no sentido próprio da palavra: os apóstolos foram posteriormente considerados pessoas “simples e sem instrução” (At 4,13). Isso não significa necessariamente que eles eram ignorantes; somente não se encaixavam em nenhum sistema reconhecido de capacidade doutrinal. O grupo vivia em comunidade, um tanto isoladamente, e seguia costumes próprios, dos quais a Última Ceia é exemplo perfeito. Assim, era na verdade uma irmandade, mais ou menos itinerante, com organização própria, que ao mesmo tempo se incumbia de anunciar a todos que o Reino estava próximo. O ambiente galileu era favorável a ambiguidades políticas, como torna-se aparente até pela acusação escrita fixada na cruz de Jesus.
  2. Jesus foi diversas vezes a Jerusalém, sozinho ou em grupo. Embora censurasse o Templo, nunca deixou de ver nele o centro das promessas. No momento decisivo, ele insistiu em confrontar as autoridades, apesar do conselho dos discípulos (ver Mt 16,22 par.). É perfeitamente possível que alguns deles nunca tivessem feito a peregrinação antes, pois, embora fossem adultos, olhavam admirados para a arquitetura. Ao voltar da Judeia passando pela Samaria, Jesus prevê o fim dos dois lugares de culto, em Jerusalém e em Garizim (Jo 4,21ss), e segue seu caminho para a Galileia. O horizonte é uma vez mais o judaísmo da Galileia, mas com alguns vislumbres de perspectivas mais amplas.
  3. A extrema importância das peregrinações que são ocasiões de encontro e conflito, está enfatizada nos evangelhos, especialmente por Lucas. São relatadas numerosas controvérsias entre Jesus e outros judeus quanto ao sábado, à pureza, à autoridade da tradição oral etc. Entretanto, em seu julgamento, nenhuma observância errada foi apresentada como motivo para acusação, mas unicamente a acusação a respeito do Templo e, assim, peregrinações. Isso é significativo. Como muitos outros antes dele, Jesus e seus companheiros tinham opiniões sobre o Templo e o que ele deveria ser, e essas opiniões, na medida em que atraíam apoio, eram consideradas ameaça pelas autoridades, quer pelo sumo sacerdote, quer pelo governador romano. O fato de compararem Jesus com Judas, o Galileu, e Teudas (At 5,35ss) mostra onde estava o problema.

As fontes estudadas revelaram alguns fatores simbólicos e religiosos que explicam a obsessão de Josefo pela Galileia. Circunstâncias socioeconômicas, fomes e opressão política também desempenharam sua parte. Mas os estudos da Galileia nesse período, que consideram decisivos esses fatores materiais, não alcançaram nenhuma síntese coerente dos aspectos específicos da cultura local, embora ponham em jogo noções como “povo da terra” ou “os pobres”. Eles acabam por fazer do Jesus histórico uma figura um tanto irreal, que por acaso surgiu na Galileia, mas sem raízes tradicionais ali.

Jesus não foi nem o primeiro nem o último reformador “fariseu” ou “galileu” a meter-se em apuros com as autoridades de Jerusalém. Seu perfil associa-se a dois tipos religiosos conhecidos, que às vezes se opõem: o mestre, com uma palavra que conta (“rabûni”), inconfundível com o escriba, e o hassid, repleto do Espírito, bem evidenciado em fontes rabínicas, com um comportamento que às vezes é paradoxal e se mantém afastado de círculos eruditos. Todos os que têm origem conhecida vêm da Galileia. Esses hassidim têm, de fato, o mesmo nome que os hassideus do tempo dos macabeus (ver 1Mc 2,42). Esses últimos têm de ser considerados antecessores dos fariseus (“separados”) e dos essênios (“fiéis”); antes designação de grupos diversos, o adjetivo tinha sentido similar. Nenhum dos termos restringe-se à definição de Josefo, que reflete uma situação mais tardia que a queda de Jerusalém. Em especial os essênios, os hassidim da Galileia e os fariseus do NT têm alguns pontos em comum. Notavelmente, todos são capazes de fazer as Escrituras falarem ao presente. Assim, para favorecer nossa pesquisa, precisamos continuar o estudo dos amplos esboços da história da Galileia judaica.

*Justin Taylor, sm. As origens do cristianismo