“Não se trata de um perigo para a fé.” Essa é a opinião do cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, expressada há alguns dias em uma entrevista concedida ao programa Stanze Vaticana, do canal italiano Mediaset, apresentado por Fabio Marchese Ragona. Um distanciamento das críticas feitas pelas páginas dos jornais e ainda mais de uma possível correção pública do papa, para um Santo Ofício que, ao longo dos séculos, fez do sigilo uma garantia e um ponto de força. Nenhuma reprimenda pública para Francisco, portanto. “Os cardeais têm o direito de escrever uma carta ao papa. Fiquei estupefato porque essa carta, porém, se tornou pública, quase obrigando o papa a dizer sim ou não. Eu não gosto disso. É um dano para a Igreja discutir essas coisas publicamente.” A nota é de Simone M. Varisco, publicado no blog Caffè Storia, 19-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A opinião do cardeal Müller já mudou os equilíbrios entre os críticos do atual pontífice, alguns dos quais estariam prontos para remover o prefeito, preferindo o cavalheiresco Burke ou o refinado Caffara. Mas a entrevista também será capaz de marcar um novo rumo nas relações entre Francisco e o cardeal Müller, que alguns sugeriram como nada idílica? 

Uma certa distância parece já ter se consumado durante o Sínodo extraordinário sobre a família, de outubro de 2014, tanto que Dom Bruno Forte, secretário especial do Sínodo, havia acenado a isso, durante uma coletiva de imprensa: apesar da sua imponência física, Müller não devia ser temido. Um assunto sobre o qual, em junho de 2016, o próprio Francisco se pronunciaria, com uma piada feita durante um bate-papo por ocasião abertura do Congresso Eclesial da diocese de Roma, em São João de Latrão, expurgada da transcrição oficial. Contando sobre um companheiro de estudos que havia contestado uma pergunta muito teórica em um exame sobre o sacramento da confissão, o papa concluíra: “Mas, por causa dessas coisas, por favor, não vão me acusar com o cardeal Müller”.

Um “medo” dos pontífices em relação ao chefe do ex-Santo Ofício, que não seria próprio só de Bergoglio. O que dizer, de fato, dos rumores que afirmavam que João Paulo II temia o julgamento de Ratzinger? “Não, mas ele levava muito a sério a minha posição.” Quem contou isso – e riu “de coração” – foi o próprio Bento XVI nas suas Ultime conversazioni [Últimas conversas] (Garzanti Libri, 2016). 

O tema da relação entre o Papa Wojtyla e o cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, já havia surgido por ocasião do primeiro livro-entrevista escrito com Peter Seewald, “O Sal da Terra” (Ed. Imago).  “Eminência – tinha perguntado então o jornalista alemão –, diz-se que o papa [João Paulo II] às vezes tem medo do senhor e que já tinha acontecido de ele se perguntar: ‘Por favor, o que o cardeal Ratzinger vai dizer?’.” Também naquele momento, “divertido”, o futuro Bento XVI especificou que “pode ter sido uma piada. Mas, certamente, ele não tem medo de mim!”.

Nas “Últimas conversas”, além disso, é o próprio Bento XVI que relata uma anedota sobre a relação entre o Santo Ofício e um antecessor, Pio XII. “Uma vez, um núncio perguntou a Pio XII se, em relação a um certo problema, ele podia fazer do seu jeito, mesmo que, desse modo, não agiria em plena conformidade com as regras. O papa pensou a respeito e depois lhe disse: ‘Você pode fazer. Mas, se o Santo Ofício ficar sabendo, eu não posso protegê-lo’ (risos).” 

Durante os anos do pontificado de Pio XII, sucederam-se à frente da Congregação para a Doutrina da Fé os cardeais Donato Raffaele Sbarretti Tazza (04 de julho de 1930 - 1º de abril de 1939), Francesco Marchetti Selvaggiani (30 de abril de 1939 - 13 de janeiro de 1951) e Giuseppe Pizzardo (16 de fevereiro de 1951 - 12 de outubro de 1959).
Em um 2017 de aniversários reformadas, ainda causarão escândalo cinco dubia afixados na porta do refeitório de Santa Marta? Fonte: http://www.ihu.unisinos.br