Redescobrir a África na história bíblica é um gesto de reparação histórica

Devolver à narrativa suas cores, seus caminhos e seus múltiplos sotaques

Sacerdotes leem a Bíblia durante a celebração da Páscoa na igreja Bole Medhanialem em Adis Abeba, Etiópia, uma das regiões da África onde se preserva as tradições bíblicas - Amanuel Sileshi - 16.abr.23/AFP 

Marcelo Rede

É doutor pela Univ. de Paris 1 e professor de história da USP

 

Em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra convida o Brasil a repensar e celebrar suas raízes africanas —as religiões de matriz afro, as influências na culinária e na música, a história de luta e resistência dos escravizados. Mas há uma herança menos lembrada: aquela que atravessa a própria Bíblia e a tradição judaico-cristã.

A razão é simples. No Brasil, o cristianismo chegou tardiamente pelas mãos da colonização portuguesa, sendo imposto e percebido como uma religião europeia, associada ao "homem branco". No entanto, o continente africano não é um território alheio à Bíblia. A África molda histórias, personagens e paisagens bíblicas desde o Gênesis até os primeiros séculos do cristianismo.

Desde o início, o Egito, o país de Kush (atual Sudão e Etiópia) e os líbios aparecem no horizonte dos antigos israelitas. O rio Geon "rodeia toda a terra de Kush" (Gênesis 2:13); o Egito é palco de refúgio e de fuga; e os profetas mencionam a Etiópia como aliada, inimiga ou exemplo moral. A Bíblia hebraica foi escrita em um mundo afro-asiático interligado por rotas comerciais, desertos e rios.

O Egito teve papel ambíguo nessa história: símbolo de opressão e cativeiro dos hebreus, mas também de reconhecimento e abrigo para José, filho de Jacó. No Novo Testamento, quando Herodes ordena a matança dos meninos de Belém, é novamente no Egito que a família de Jesus busca refúgio.

arqueologia confirma o contato intenso entre esses mundos. Escavações em cidades cananeias como Laquish e Megido encontraram amuletos, cerâmicas e selos com motivos egípcios datados de 3.400 anos atrás —época em que o delta do Nilo e a região de Canaã formavam um mesmo sistema político e cultural.

Do Egito também vem uma das primeiras menções extrabíblicas a Israel. A estela do faraó Merneptá, de cerca de 1208 a.C., hoje no Museu do Cairo, traz a inscrição: "Israel está devastado, sua semente não existe mais". É a mais antiga referência escrita ao nome de Israel.

O reino de Kush, na antiga Núbia, é outra presença africana marcante. Na Bíblia, os kushitas aparecem como guerreiros valorosos e diplomatas. A arqueologia moderna devolveu-lhes o rosto: as pirâmides e templos de Napata e Meroé, erguidos entre os séculos 8º a.C. e 4º d.C., revelam uma civilização africana poderosa que chegou a dominar o próprio Egito. Foram os "faraós negros" da 25ª dinastia. O profeta Isaías menciona um deles, Tiraca, em meio às guerras entre Egito e Assíria.

No Novo Testamento, a África reaparece em outro contexto. O livro dos Atos dos Apóstolos cita um "eunuco etíope", servidor da rainha Candace, que encontra o apóstolo Filipe, é batizado e leva o cristianismo para o interior do continente. Séculos depois, comunidades cristãs floresceriam no vale do Nilo e na Etiópia, preservando tradições bíblicas que se perderiam em outros lugares. Foi ali que sobreviveram, em língua geʿez, livros como Henoc e Jubileus, fundamentais para compreender o judaísmo e o cristianismo antigos.

A primeira tradução da Bíblia nasceu também em solo africano. Em Alexandria, no Egito helenístico, tradutores judeus verteram o texto hebraico para o grego: a Septuaginta, realizada entre os séculos 3º e 1º a.C. Essa versão seria a Bíblia usada pelos primeiros cristãos e citada no próprio Novo Testamento. As ruínas de sinagogas e escolas alexandrinas confirmam a vitalidade dessa diáspora judaica africana, cujo legado moldou o pensamento religioso ocidental.

Outras descobertas arqueológicas ampliam esse quadro. Em Elefantina, ilha no sul do Egito, foram achados papiros aramaicos do século 5º a.C. que documentam uma comunidade judaica com seu próprio templo dedicado a Yahweh. Esses textos mostram que a presença judaica na África é muito mais antiga e diversa do que se supunha. Os judeus de Elefantina falavam aramaico, trabalhavam para o exército egípcio e mantinham contato com Jerusalém —um exemplo precoce de mundo híbrido que a Bíblia tantas vezes reflete.

Durante séculos, no entanto, a tradição europeia apagou essa geografia original. As representações ocidentais branquearam as figuras bíblicas, deslocando simbolicamente a história sagrada para o norte do Mediterrâneo. Redescobrir a África na Bíblia é também um gesto de reparação histórica: devolver à narrativa suas cores, seus caminhos e seus múltiplos sotaques. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br