Concílio arejou a Igreja, a despeito de uma minoria que se opôs e ainda se opõe às suas decisões. Foi como se uma lufada de ar fresco entrasse em seu interior

 

*Por Isaías Pascoal

A morte do papa Francisco colocou em operação o cerimonial tradicional das exéquias do pontífice morto e da eleição do seu sucessor por uma das mais antigas instituições do mundo atual: a Igreja Católica, com sua jornada histórica de aproximadamente 2 mil anos.

Nesse tempo ela enfrentou desafios inauditos, criou um cânon doutrinário substancioso, construiu uma institucionalidade sólida e um modus operandi que lhe deu identidade com raízes profundas. Foi com esse aparato que ela atravessou inúmeras transformações históricas e estabeleceu relações com povos e culturas dos mais diversos matizes.

Nos séculos 1 e 2, era impossível vislumbrar que o cristianismo se tornaria a religião oficial do Império Romano no século 4, que a Igreja seria a principal referência política, cultural e religiosa da Idade Média europeia, e que, no alvorecer dos tempos modernos, estaria presente nos demais continentes para a maior obra evangelizadora da sua história.

Até então, os desafios que enfrentou, embora gigantescos, se situavam na dimensão religiosa e da fé. Não foi assim nos séculos posteriores ao Iluminismo, quando uma cultura laica, materialista e secularizada ocupou espaços mais amplos na sociedade e impulsionou os papas Pio IX (1846-1878) e Pio X (1903-1914) a se pronunciarem contra o “mal do modernismo”. A encíclica Pascendi (1907), de Pio X, é a mais alta expressão da guerra movida pela Igreja contra o que ela denominava de modernismo. Além dos “ídolos” que ele criava em competição com o sentimento religioso, no final conduzia ao ateísmo, à negação da fé e, portanto, do homo religiosus.

Na nova situação, a Igreja se colocou na defensiva, hostil ao mundo e em conflito contínuo com a modernidade. No pontificado de Pio XII (1939-1958), o seu sentido místico e espiritualista se acentuou, como demonstra expressamente a encíclica Mystici Corporis (1943).

O conclave que escolheu o sucessor de Pio XII, morto em 9 de outubro de 1958, se reuniu entre os dias 25 e 28 de outubro. Somente no quarto dia, na 11.ª votação, é que foi eleito o novo papa: o cardeal Roncalli, patriarca de Veneza, com quase 77 anos, e que adotou o nome de João XXIII. Foi visto como um papa de transição, com curto pontificado, para permitir à Igreja se preparar para algo mais seguro e longevo à frente.

O novo papa, contudo, chocou a Igreja e o mundo ao convocar, em 25 de janeiro de 1959, um novo concílio ecumênico. Papas anteriores haviam pensado na convocação de um concílio, mas desistiram da ideia em razão da dimensão dos esforços para colocá-lo em prática. João XXIII não desistiu e preparou o ambiente e as condições para a sua realização.

Em 11 de outubro de 1962, ele teve início. O papa morreu no ano seguinte, em 3 de junho de 1963, com apenas uma sessão do concílio tendo se realizado.

O seu sucessor, o cardeal Montini, arcebispo de Milão, adotou o nome de Paulo VI e deu continuidade ao concílio, que terminou em 8 de dezembro de 1965, após quatro sessões deliberativas. Desde então, a Igreja vive sob a moldura das decisões tomadas no Vaticano II.

Ela mudou a sua face e a sua relação com o mundo. Foi aggiornata (modernizada) e cumpriu os anseios do papa João XXIII, que deixou bem claro desde o início o seu intento. No seu discurso solene de abertura do concílio, afirmou: “No exercício cotidiano do nosso ministério pastoral, ferem nossos ouvidos sugestões de almas, ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos atuais, elas não veem senão prevaricações e ruínas; vão repetindo que a nossa época, em comparação com as passadas, foi piorando; e portam-se como quem nada aprendeu da História, que é também mestra da vida, e como se no tempo dos concílios ecumênicos precedentes tudo fosse triunfo completo da ideia e da vida cristã, e da justa liberdade religiosa. Mas parece-nos que devemos discordar desses profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo. No presente momento histórico, a Providência está-nos levando para uma nova ordem de relações humanas, que, por obra dos homens e o mais das vezes para além do que eles esperam, se dirigem para o cumprimento de desígnios superiores e inesperados; e tudo, mesmo as adversidades humanas, dispõe para o bem maior da Igreja.”

O concílio arejou a Igreja, a despeito de uma minoria que se opôs e ainda se opõe às suas decisões. Foi como se uma lufada de ar fresco entrasse em seu interior. Documentos como a Lumen Gentium e Gaudium et Spes deram nova roupagem aos conceitos tradicionais do seu “depósito” doutrinário milenar. Deles emerge uma Igreja sorridente, otimista e acolhedora, que está no mundo, com ele, e não contra ele, padecendo as suas dores e lhe oferecendo o lenitivo do seu “tesouro”. Em maior ou menor medida, foi assim que os papas pós-concílio se apresentaram ao mundo, e que Francisco expressou no limite. As ondas estão agitadas, mas a barca precisa continuar a viagem.

*Opinião por Isaías Pascoal. Doutor em Ciências Sociais. Fonte: https://www.estadao.com.br