Ao tratar a política como guerra santa entre o ‘bem’ e o ‘mal’, como fez na Paulista, a ex-primeira-dama deixa claro que espera dos fiéis da seita bolsonarista fé absoluta em seu marido

 

No discurso de abertura da manifestação bolsonarista de domingo passado, Michelle Bolsonaro tratou como um triunfo do “mal” o fato de haver no Brasil a devida separação entre política e religião. “Por um tempo, fomos negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião”, disse a ex-primeira-dama. “E o mal tomou, e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação. ‘Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará’”, concluiu Michelle, reproduzindo o versículo da Bíblia que serviu como mote da campanha de seu marido à reeleição.

Ao questionar a laicidade do Estado, a ex-primeira-dama explicitamente atenta contra essa conquista civilizatória da sociedade brasileira, que remonta ao fim do século 19, e é uma das cláusulas pétreas da Constituição de 1988. Nada disso causa surpresa nem é novidade, dada a sistemática campanha do bolsonarismo para transformar os anseios cristãos, particularmente evangélicos, em arma política. Mas o apelo escatológico de Michelle Bolsonaro neste momento sugere que o bolsonarismo pretende caracterizar as agruras do ex-presidente Jair Bolsonaro na Justiça como parte da luta do bem – Bolsonaro, é claro – contra o mal, isto é, o Supremo Tribunal Federal e, particularmente, o ministro Alexandre de Moraes.

Ao trazer explicitamente a questão política e jurídica para o terreno do fundamentalismo religioso, o bolsonarismo não admite heresias: para ter a bênção de Bolsonaro, é preciso demonstrar fé inabalável em sua doutrina e em seu evangelho. Quando diz e repete que ganhou a eleição de 2022, Bolsonaro não precisa apresentar provas: por sair da boca de um sujeito que se julga escolhido por Deus, sua palavra basta.

“Aprouve ao Senhor nos colocar à frente desta nação. Aprouve a Deus nos colocar na Presidência da República”, disse Michelle na manifestação. Portanto, conforme essa exegese, se Deus pôs, só Deus poderia tirar. Não à toa, uma pesquisa da USP com participantes da manifestação bolsonarista mostrou que, para nada menos que 88% dos entrevistados, Jair Bolsonaro venceu a eleição de 2022 e só não foi empossado porque uma fraude o impediu. Sem qualquer respaldo em fatos concretos, tal conclusão só pode ser resultado de fé absoluta, a mesma que move os 94% dos presentes que, conforme a mesma pesquisa, disseram acreditar que o Brasil vive sob uma “ditadura” em razão do que qualificam como “excessos e perseguições” da Justiça. O fato de que participavam de uma manifestação política de oposição ao atual governo sem serem incomodados pelas forças do Estado, algo que por si só desmente a conclusão de que vivemos sob uma “ditadura”, não parece ter sido suficiente para importar alguma dúvida – prevaleceu a certeza mística produzida pelo bolsonarismo radical.

Diante disso, a aposta de Michelle numa abordagem sobrenatural e escatológica, numa ideia de que estamos testemunhando a luta final do “bem” contra o “mal”, como se a política fosse uma guerra santa de aniquilação, revela-se muito eficaz, sobretudo diante do iminente encontro de Bolsonaro com seu inexorável destino jurídico-penal. Nada, pois, é fortuito.

O fanatismo religioso é, por óbvio, a negação da política. Para os fanáticos, não há adversários políticos a contestar, e sim inimigos demoníacos a eliminar. Não existem dúvidas, apenas certezas, estabelecidas por Deus por intermédio de seus profetas iluminados. O apelo ao mistério é a repulsa aos fatos, sobre os quais é preciso haver consenso mínimo para estabelecer qualquer forma de diálogo. A prevalecer o místico – instrumentalizado por lideranças políticas ou partidos de quaisquer inclinações ideológicas –, tem-se o fim da concertação civilizada entre os interesses em disputa numa sociedade plural e democrática. Certamente é isso o que pretendem os fanáticos bolsonaristas, e é contra isso que devem lutar os que prezam a democracia e a liberdade. Fonte: https://www.estadao.com.br