Dossiê inédito mostra que país registra 108 casos nacionais de abusos envolvendo clérigos católicos

 

Livro-reportagem escrito pelos jornalistas Fábio Gusmão e Giampaolo Morgado Brag — Foto: Divulgação

 

Por Raíssa Oliveira 

Publicado em 11 de setembro

Minas é o segundo Estado do Brasil com mais padres investigados, denunciados ou condenados nos últimos anos por supostos abusos sexuais contra vulneráveis. Ao todo, 108 líderes da igreja católica foram denunciados por atentado violento ao pudor, corrupção de menores e estupro, entre outros crimes contra crianças, adolescentes e pessoas com deficiência em todo país, segundo dossiê inédito feito com base em 25 mil páginas de documentos de processos e inquéritos policiais, além de relatos de vítimas, condenados e integrantes do clero. A pesquisa aponta supostos abusos por nove cléricos católicos contra 23 vítimas em Minas Gerais. O Estado tem ainda mais dois religiosos que entraram na mira da Justiça após o fechamento do estudo.

Os padres na mira da Justiça por supostos crimes sexuais mapeados no dossiê teriam sido denunciados por situações ocorridas nas cidades Santa Bárbara, Mariana, Três Corações, Carmo da Mata, Juruaia, Arceburgo, Araguari, Oratórios, Santa Luzia, Ponto dos Volantes e Comendador Gomes. Os outros dois casos não presentes no estudo teriam ocorrido em João Monlevade. No entanto, não há informações sobre o resultado dos processos.  

O dossiê consta no livro-reportagem escrito pelos jornalistas Fábio Gusmão e Giampaolo Morgado Brag. “O Brasil, que é o maior país católico do mundo, não discute esse tema que já foi debatido em diversos países. Desde o escândalo de pedofilia a partir do Estados Unidos, em 2002, quando foram trazidos à tona pela equipe investigativa Spotlight do jornal “The Boston Globe”, igrejas do mundo todo passaram a discutir o tema. Mapeamentos foram feitos em diversos países, como Chile, Alemanha e Portugal, mas no Brasil algumas legislações acabaram por criar uma postura de silêncio e complacência com o abusador”, afirma Giampaolo Morgado Brag. (Confira entrevista abaixo) 

A falta de dados sobre os casos faz com que a construção de um retrato de crimes do tipo no país se torne um desafio, além de ajudar a mascarar e dificultar a identificação dos abusadores. “Parte da pesquisa tem base em dados públicos, mas a partir daí, depois que entra em investigação, isso percorre o caminho do sigilo. Toda investigação sigilosa não carrega o nome dos envolvidos. Para as crianças isso é de fato fundamental, mas ao mesmo tempo os abusadores se valem do anonimato”, aponta Fábio Gusmão. 

Apesar dos desafios, o levantamento, feito ao longo de três anos, resultou na identificação de 148 vítimas suspeitas ou confirmadas entre crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência intelectual supostamente alvos de membros da igreja em 96 cidades de 23 Estados. Dessas vítimas, 23 foram em Minas Gerais. Todos os abusos descritos no livro envolvem arcebispos, bispos, monsenhores, padres, frades e, em um deles, uma freira.

 

Novos casos 

O número, entretanto, pode ser ainda maior. A reportagem de O TEMPO apurou que a Polícia Civil (PCMG) investiga dois padres suspeitos de estupro de vulnerável em João Monlevade, na região Central de Minas, no primeiro semestre deste ano. Como a investigação acontece em segredo de Justiça, não foi informado o número de supostas vítimas neste caso.  

Segundo a PC, as investigações foram solicitadas pelo advogado de uma vítima, por meio de representação junto ao Ministério Público de Minas Gerais. No entanto, por se tratar de crimes contra a dignidade sexual, o procedimento corre em segredo de justiça e não há mais detalhes sobre o caso. 

Procurada, a Diocese Itabira Coronel Fabriciano - responsável pelas igrejas da região - confirmou que um processo canônico também apura as denúncias contra os religiosos e que a investigação também está sob sigilo. Segundo o porta-voz da Diocese, padre Ueliton Neves da Silva, os padres alvos da denúncia foram licenciados da igreja. 

“Os padres não estão à frente de paróquias até os esclarecimentos do caso. Eles foram licenciados, ou seja, não estão ocupando atualmente nenhuma função que requer os serviços de padres. No mais, não podemos emitir juízo do caso porque ainda está em apuração”, afirma. 

 

Silêncio conivente 

Para o teólogo e cientista da religião, Sandson Rotterdan, os dados mapeados ao longo da pesquisa são preocupantes, sobretudo, diante de uma realidade de subnotificação, seja por um acobertamento dos crimes ou por falta de denúncia. Ele pontua que a maioria dos casos de abusos registrados no país não são de religiosos. No Brasil, 6 em cada 10 vítimas são vulneráveis com idades entre 0 e 13 anos, e foram abusadas por familiares e outros conhecidos. Os dados são do Anuário de Segurança Pública 2023. No entanto, quando o crime é registrado na igreja há um agravante social por também envolver o que para muitos é essencial: a fé.

 “Estamos pensando em uma pessoa que deveria acolher e cuidar com respeito e agir de forma divergente, causando uma ferida social muito grande, ao negar tudo o que se espera de um padre. A subnotificação é preocupante, e se torna mais gravoso quando isso é cometido por um clérigo. A igreja católica é uma instituição muito séria, com uma legislação muito séria e que tem um papel social muito grande. Mas temos vários crimes que foram encobertos, aqueles que recebem as denúncias não dão andamento a ela, indo contra o que a religião prega”, afirma.

Ele pontua que, ao longo da história, a Igreja optou por um silêncio conivente, em determinados momentos, em relação aos casos de abusos sexuais dentro da instituição. No entanto, segundo o especialista, nos últimos anos houve uma abertura maior sobre a necessidade de combater o crime dentro do catolicismo.

“É vergonhoso como isso foi tratado por muito tempo. A Igreja teve uma atitude leniente em relação aos casos de abusos sexuais. Mas só a partir do pontificado do Papa Bento XVI que Igreja toma medidas estruturais de combate a pedofilia. Isso tem se intensificado com o Papa Francisco. Mas quando falamos de uma instituição histórica e grande essa implementação não é automática, há a necessidade de criar uma consciência nos membros sobre a necessidade de fiscalizar essas regras”, avalia. 

A reportagem procurou a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) sobre os dados de casos de abusos sexuais em investigação contra padres e líderes religiosos, mas foi informada que não é possível realizar o levantamento por não haver “campo parametrizado que permita filtrar“ os alvos no Registro de Eventos de Defesa Social (Reds). 

Sobre os dados contra clérigos no Brasil, a reportagem procurou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que disse, em nota, que “não irá se manifestar”.

 

Veja ranking dos Estados com padres denunciados por abusos sexuais na Igreja Católica:

São Paulo - 32

Minas Gerais - 9

Paraná - 8

Rio Grande do Sul - 8

Santa Catarina - 8

Alagoas - 5

Bahia - 4 

Ceará - 4

Goiás - 4

Mato Grosso - 4

Pará - 4 

Distrito Federal - 3

Rio Grande do Norte - 3

Pernambuco - 2

Espírito Santo - 2

Amapá - 1

Amazonas - 1

Mato Grosso do Sul - 1

Paraíba - 1 

Piauí - 1

Rio de Janeiro - 1

Rondônia - 1

Tocantins - 1

 

Vergonha social é desafio, aponta Brag

Além da falta de dados e do sigilo judicial dos processos, Giampaolo Morgado Brag aponta que a construção do dossiê também esbarrou no constrangimento e na vergonha social enraizada nas vítimas, que acabam não denunciando os crimes. Confira o bate-papo com o jornalista e autor do livro Pedofilia na Igreja. 

 

Qual foi o maior desafio na hora de reunir os dados?

“Primeira coisa o sigilo judicial em si dos processos, que dificultou para encontrar os casos, o segredo da justiça encobre tudo. Segunda coisa, a questão das vítimas que buscam muitas vezes esquecer o caso e, se são recentes, os pais e mães querem encobrir o caso, por vergonha social, constrangimento de ser vítima de crime sexual cometido por um padre, membro da sociedade respeitável. Temos ainda a questão da própria comunidade católica da região, que muitas vezes se coloca do lado do líder religioso, isto gera uma camada extra de dificuldade.”

A falta de divulgação dos casos também pode ser apontada como um empecilho para construção de uma base de dados?

“Sim, a cobertura jornalística nesses casos é muito episódica, ou seja, surge a denúncia, sai uma matéria, uma outra depois de dois a três dias e então o caso morre. Depois de 3 anos aparece uma matéria novamente e esquece a história, além disso temos as vítimas que muitas vezes são esquecidas ao focarmos nos criminosos. O dano é brutal na vida dessas pessoas. Temos vitimas de 10 a 20 anos, que continuam carregando a marca do crime que sofreram e se culpando pelo crime que sofreram.” 

 

Foi difícil chegar até as vítimas?

“Foi extremamente difícil chegar à pessoa. Teve caso que tivemos meses para conseguir chegar a alguém. Começamos a apuração em janeiro de 2020. Mas após três anos de reunião de dados, tiramos alguns nomes pelo padre ter sido absorvido ou porque não havia consistência de informações.” 

Ao longo da pesquisa, vocês presenciaram casos de padres denunciados à igreja por estuprar uma criança, mas que não respondem judicialmente pelo crime? Acha que isso segue acontecendo? Podemos dizer que isso é uma forma da Igreja ser conivente com o crime?

“Nesses 10 anos do Papa Francisco houve uma mudança de postura do clero e da legislação canônica. Há uma mudança de posicionamento porque resolveram discutir o tema, só que a igreja é uma estrutura antiga e velha, solidificada e engessada nas suas estruturas, é uma organização imensa. A ordem do Papa vence uma barreira e uma cultura de não discutir esse assunto, uma segunda barreira que é a dificuldade em expor esses padres. Não é um crime meramente canônico, é um crime civil e tem que ser tratada no âmbito da igreja e na esfera judicial. Nós lutamos para conseguir um posicionamento, lutamos pelo Vaticano, pela CNBB. O Vaticano mandou uma nota depois de 2 anos indicando para que a gente falasse com o representante brasileiro da igreja, ele é diretor. Conversamos com ele, que foi muito solicito.”

Após a divulgação do livro vocês começaram a receber relatos de casos ou contato de vítimas? O caso de João Monlevade, como chegou até vocês?

“Minas é um dos estados com mais casos, além de ser grande em extensão, o estado tem muitas Dioceses, com muitos fiéis. De uma maneira geral estão começando a surgir casos, não só de novos padres, mas de padres já conhecidos, com novas vítimas. Estamos compilando esses casos para acrescentar histórias, caso haja uma segunda edição. Das Dioceses em geral o que vemos é um profundo silêncio. Quando o livro saiu a CNBB se pronunciou de forma contundente dizendo que é crime e tem que ser tratado como tal. Mas queremos que o Brasil tenha arquidiocese como os de Boston (EUA), com os casos expostos no site”. Fonte: https://www.otempo.com.br