Dom Eurico dos Santos Veloso

Arcebispo Emérito de Juiz de Fora (MG) 

 

No início da nossa caminhada quaresmal, a Palavra de Deus convida-nos à “conversão” – isto é, a recolocar Deus no centro da nossa existência, a aceitar a comunhão com Ele, a escutar as suas propostas, a concretizar no mundo – com fidelidade – os seus projetos. Indo com Jesus ao deserto, aprendemos com Ele a vencer as ciladas da maldade, do demônio e a reafirmar nossa adesão ao Deus de amor e de bondade que nos leva pela sua mão. 

A primeira leitura – Gn 2,7-9;3,1-7 –  afirma que Deus criou o homem para a felicidade e para a vida plena. Quando escutamos as propostas de Deus, conhecemos a vida e a felicidade; mas, sempre que prescindimos de Deus e nos fechamos em nós próprios, inventamos esquemas de egoísmo, de orgulho e de prepotência e construímos caminhos de sofrimento e de morte. A figura da serpente, o tentador se manifesta aos nossos primeiros pais, de maneira ardilosa e vil, para induzir-lhes ao erro. Invertendo o mandamento apresentado por Deus, que tinha como finalidade preservar a vida humana e a integridade espiritual, a serpente sugere que Deus é um ser invejoso. E assegura que, caso comessem do fruto proibido, o homem e a mulher seriam como Deus. O resultado é aquilo que São Paulo desenvolve na segunda leitura de hoje: pelo pecado, a morte entrou no mundo. Os seus efeitos se estenderam a todos os homens, pois todos pecaram. 

A segunda leitura – Rm 5,12-19 – propõe-nos dois exemplos: Adão e Jesus. Adão representa o homem que escolhe ignorar as propostas de Deus e decidir, por si só, os caminhos da salvação e da vida plena; Jesus é o homem que escolhe viver na obediência às propostas de Deus e que vive na obediência aos projetos do Pai. O esquema de Adão gera egoísmo, sofrimento e morte; o esquema de Jesus gera vida plena e definitiva. Se por meio da transgressão de um só homem o gênero humano fora relegado à morte, é também por meio de um só homem, Jesus Cristo, que o dom gratuito, isto é, a graça de Deus, é derramado de  maneira vigorosamente mais abundante e superior sobre todos. Ora, se o pecado cometido por nossos primeiros pais resultou em condenação, o dom da graça, derramado por Jesus Cristo, resultou em justificação. Tudo isso, alcançado pelo preço de seu sangue, em perfeita obediência ao Pai. 

O Evangelho – Mt 4,1-11 – apresenta, de forma mais clara, o exemplo de Jesus. Ele recusou – de forma absoluta – uma vida vivida à margem de Deus e dos seus projetos. A Palavra de Deus garante que, na perspectiva cristã, uma vida que ignora os projetos do Pai e aposta em esquemas de realização pessoal é uma vida perdida e sem sentido; e que toda a tentação de ignorar Deus e as suas propostas é uma tentação diabólica e que o cristão deve, firmemente, rejeitar. Jesus venceu as tentações, as quais cederam outrora Adão e Eva, para nos devolver a possibilidade real de viver com Deus nesta vida e, depois, participar da vida divina nova e eternamente. Para tanto, precisamos vencer todas as tentações, simbolizadas pelas três propostas apresentadas pelo Tentador de Cristo. Revestido e guiado pelo Espírito Santo, Jesus  jejuou 40 dias e 40 noites – como Moisés em Ex 34,28 – e teve fome, como todo ser humano. Foi tentado e nunca cedeu às impertinências do Maligno. Jesus é provado no deserto e durante sua vida terrena sua condição de Filho e Messias até vencer completamente o mal, entregando-se na Cruz. 

Jesus nos ensina como superar as propostas enganadoras da sociedade moderna: as tentações do combate simplicista da fome, da sujeição à ambição do lucro e do uso mágico da religião e de Deus. 

Que o percurso quaresmal, em clima de sinodalidade eclesial, nos ajude a bem vivenciar nossa vocação cristã. O vigor do nosso testemunho cristão consiste em assimilar a Palavra de Deus. É ela que nos permite vencer as tentações da autorrefencialidade, da propagação dos discursos de ódio – dos quais podemos nos tornar agentes, potencializando-os nas redes sociais – , da adesão à lógica da competição, da indiferença ao clamor dos descartados que gritam por vida digna. 

Vençamos as tentações! Jesus continua nos chamando a adentrar ao deserto da nossa alma para vencer as forças demoníacas que só podem ser vencidas pela nossa abertura à Palavra da Salvação! 

Um dos gestos concretos deste domingo, bem como de toda a Quaresma, está em sintonia com a Campanha da Fraternidade em prol do combate à fome com a nossa atitude prática de oração que se transforma em ação, dando de comer a quem tem fome, a ser generoso, sobretudo neste tempo de graça, penitência e conversão. Fonte: https://www.cnbb.org.br