Religioso espanhol reza missas pelo Instagram e conduz sepultamentos virtuais de vítimas de Covid-19: ‘Cada morte tem um valor infinito’

 

Maria Fortuna

RIO — Padre José Maria Ramirez, da Congregação Legionários de Cristo, é famoso entre seus fiéis pela modernidade. Superconectado, ele tem a Bíblia no celular, adora Skype e libera o uso de telefone nas missas que celebra, na igreja da Rua Embaixador Carlos Taylor, na Gávea, lotada em tempos pré-coronavírus.

Nesse isolamento forçado por causa pandemia, o espanhol de 65 anos tem recorrido, mais do que nunca, à tecnologia. Criou um perfil no Instagram (@catecismo_rc) para celebrar missas aos domingos, às 18h (“as pessoas estão precisando de acolhimento”), e tem conduzido de dois a três sepultamentos virtuais por semana por um aplicativo de reunião. Foi o jeito que encontrou para que famílias possam se despedir de seus entes queridos nessa morte solitária causada pela Covid-19.

— É duro não poder dar adeus a quem se ama, não abraçar pessoas queridas nessa hora. Lembra outros tempos, quando os leprosos eram isolados de suas famílias — lamenta. — Cada morte tem um valor infinito. Como falar em estatística se é um amigo que se vai? Como proibir um filho de ir ao funeral de seu pai? Tudo é muito triste.

Ele, no entanto, sugere que lutemos contra angústia que tem tomado conta diante de algo cuja solução não depende da gente.

—Esse sentimento só nos enfraquece. Precisamos nos concentrar em fazer a nossa parte: ficar em casa para proteger os outros, usar máscaras, amenizar a solidão das pessoas queridas fazendo pequenas surpresas, ligando quatro vezes ao dia. Tem que usar FaceTime, Zoom, Team Viewer, Skype, mandar música pelo celular... — enumera. — Temos a pretensão da eternidade e deixamos para tudo para depois. “Vejo minha mãe depois, ligo para o meu irmão depois...” A verdade é que nós vivemos só no presente.

À frente do Centro de Evangelização Nossa Senhora de Guadalupe, mais conhecido entre os frequentadores como Casa da Gávea, padre Zé Maria não enxerga um sentido em si na tragédia. Muito menos acredita que ela foi enviada pelo “todo poderoso” para nos ensinar algo.

— Deus não envia o mal ao mundo. O mal, fazemos nós mesmos. Mas há coisas boas para tirar desse momento, como um maior espírito de reflexão, autoconsciência dos nossos limites e a solidariedade.

O convívio familiar, para quem tem o privilégio de poder ficar em casa, também é uma oportunidade e não um castigo, segundo o religioso.

— Vamos sentir saudades da quarentena nesse aspecto— acredita. — Lembro de uma família na Itália cujo pai era piloto de avião. Ele ficou doente e não pôde trabalhar no Natal. O filho lhe disse: “papai, que bom que você ficou doente”. É o que as crianças estão sentindo agora. Vivemos a correria do trabalho, uma entrega que vai além do bom. As pessoas acabam deixando de brincar no chão, de rolar com seus filhos no tapete.

Às vezes, só diante do sofrimento o ser humano acorda para as pequenas coisas, acredita. A repetição da rotina é automática e apenas um momento extraordinário para nos fazer despertar para o que realmente importa. Agora, o que será do mundo depois que a doença passar...

— Vai depender da atitude de cada um, porque o ser humano é livre. As mesmas circunstância e dificuldades fazem o covarde e o herói — afirma. — Acredito que vamos sair dessa mais humildes, menos vaidosos e mais autênticos. As pessoas estão enviando fotos de pijama, isso significa menos preocupação com as aparências.

Para além dos aspectos superficiais, ele cita o caso de um amigo, que não conseguia mais pagar seus funcionários e teve que fechar as portas de sua empresa de eletrônicos por causa da pandemia

— Ele, então, decidiu convidar todos para, de modo voluntário, criarem juntos o primeiro respirador feito no Brasil. Aí ofereceu o know-how para quem quisesse fazer o mesmo. Tudo depende do que cada um faz diante das oportunidades.

Toda essa oratória simples e direta do padre Zé Maria fez com que ele se tornasse bastante popular nos arredores de seu centro de evangelização. Ao contrário da fala rebuscada de alguns religiosos, ele se comunica diretamente com os fiéis sem a aura intocável, que por vezes distancia.

Os problemas e as belezas do Rio são assuntos de suas missas. Não à toa, ele virou personagem do livro “A vista do Rio”, sobre a Vista Chinesa, que ele costumava visitar de bicicleta antes da pandemia. Escalar Pedra da Gávea é outra paixão.

— Dizem que não pareço padre. Será que tem que ser marciano? — brinca. — Cristo, por exemplo, é o mais humano dos humanos. Estudei em colégios religiosos e achava que os padres eram fora da realidade. Quando comecei a ler o evangelho, vi que Jesus falava nas praças para todos, que as pessoas eram atraídas por ele sem serem forçadas.

Para ele, a Igreja erra a mão quando não busca a empatia.

— Tem que enxergar o ser humano sem entrar na carolice, no moralismo. Rezar por obrigação é cair no vazio, se afastar da essência. Não adianta rezar mil Ave Marias na missa, sair de lá e ficar fofocando ou ter ódio. Falhamos sempre, isso significa que não temos que categorizar pessoas, é preciso amar a todos — diz ele, um fã do Papa Francisco. — Ele é o Papa que Deus quer para o momento atual. Desburocratiza, desmistifica a religião. Francisco tem compaixão, sofre com quem sofre, se alegra com quem se alegra. Isso é amor.

Foi isso que padre Zé Maria sentiu quando, ainda cursando a faculdade de Economia, em Madri, recebeu “o chamado” para se tornar padre.

— Percebi que o mundo precisava menos de economistas e mais de pessoas que levassem o amor de Cristo ao mundo — conta o religioso, que é mestre em Filosofia e Teologia, e mora no Brasil desde 1997. Fonte: https://oglobo.globo.com