Por Luís Corrêa Lima *

 

Um dos principais pilares do credo cristão é a fé em Deus, o criador do céu e da terra. Isso inclui o mundo, a natureza e o ser humano como criação divina, a obra de um ser poderoso e bom, projetado para brilhar Sua glória e compartilhar Sua vida. O relato bíblico da criação, contido nos primeiros capítulos da Bíblia, marcou a tradição judaico-cristã e a cultura humana. No começo de tudo, não é o caos, mas o próprio Deus. Pela Sua palavra vêm a luz, as estrelas, as águas, os continentes e a vida. A humanidade vem do sopro divino sobre a matéria, constituindo-se como imagem e semelhança divinas e guardiã da criação. Nesse relato, muitas gerações encontraram significado na vida, felicidade, família, civilização, normas que governam a sociedade e também no trato com o mal e a morte.

Com o tempo, surgiram perguntas sobre certos pontos: a criação do universo em seis dias, a terra veio antes do sol e das estrelas, o homem veio direto do pó da terra e a mulher saiu da costela do homem . Também foi questionada a dominação masculina sobre a mulher (“você será atraído pelo seu marido e ele o dominará” - Gênesis 3:16).

Em resposta a essas perguntas, um apego intransigente à letra do texto bíblico, o fundamentalismo, foi gerado no final do século XIX e no início do século XX. A Palavra de Deus, inspirada por Ele, deveria estar livre de erros e deve ser interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Para aqueles que ousaram questioná-lo em nome da razão, o dilema foi levantado há muito tempo: "você acredita ou pensa". Esse pool ideológico afastou muitas pessoas da intenção correta da religião cristã.

Felizmente, a evolução da ciência e da sociedade também levou os cristãos a ler os textos sagrados de outra maneira, libertando-os do dilema perverso. Com o papa Pio XII e mais tarde com o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica assimilou métodos científicos de interpretação da Bíblia, incorporando a ajuda de várias ciências, da arqueologia à literatura. O leitor contemporâneo deve buscar o significado que os autores sagrados, sob certas circunstâncias, de acordo com as condições de seu tempo e cultura, pretendem expressar usando modos ou gêneros literários então utilizados. É preciso levar em consideração as maneiras apropriadas de sentir e narrar em uso em seu tempo, bem como as maneiras pelas quais as relações entre os homens naquela época eram empregadas. Foi assim que a Palavra de Deus chegou até nós: não ditada por Ele, mas inspirada,

O fundamentalismo não deixou de existir e ter muita força. Hoje, porém, a Igreja alerta para seu risco: ao recusar qualquer pesquisa questionadora ou crítica, coloca na vida dos fiéis uma falsa certeza, confundindo as limitações humanas da mensagem bíblica com a substância divina dessa mensagem. Isso implica implicitamente uma forma de "suicídio de pensamento". Contra a evidência, os cristãos fundamentalistas continuam alegando que o mundo foi feito em seis dias, a mulher veio da costela do homem e deve ser dominada por ele.

Hoje surge outra questão: a realidade da população LGBT que se tornou visível no mundo contemporâneo. É necessário aprofundar a reflexão sobre a criação do ser humano na dualidade do homem e da mulher. Sem negar essa dualidade original e seu valor, deve-se notar que nem todas as pessoas são heterossexuais e nem todas se identificam com o sexo que lhes é atribuído no nascimento. Esta não é uma escolha deles, mas algo constitutivo de seu ser, com componentes biológicos e psicossociais. São rostos da complexa diversidade entre homens e mulheres, que não podem ser simplificados em uma leitura superficial e grosseira. Não pode ser imposto a todos que vivem como heterossexuais e identificados com o sexo ao nascer.

Também nesta complexa diversidade, o ser humano permanece criação divina, obra de um ser poderoso e bom, destinado a brilhar Sua glória e a participar de Sua vida.

 

* Luís Corrêa Lima é padre jesuíta e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Ele trabalha com pesquisas sobre gênero e diversidade sexual, e sobre o acompanhamento espiritual de pessoas LGBT.

Fonte: http://rainbowcatholics.org