Em outro programa, de 2018, Cristo era um mau caráter beberrão e hétero, mas não caiu no radar de religiosos

 

Anna Virginia Balloussier

Para o Natal do ano passado, o Porta dos Fundos lançou um especial na Netflix, "Se Beber Não Ceie", em que Jesus era um baita de um mau caráter beberrão —e um bem hétero, aliás, de casinho com Maria Madalena. 

O programa não caiu no radar de religiosos. O alvoroço estava guardado para 2019: "A Primeira Tentação de Cristo", o filme preparado para este fim de ano pelo grupo humorístico, despertou uma fúria interreligiosa que pôs na mesma arca de evangélicos a muçulmanos.

A grita evangélica foi a primeira a ecoar. Portais do segmento estamparam manchetes como "não escondem mais seu ódio" (Gospel Mais) e "o vilipêndio à fé com a conivência da Netflix" (Pleno News).

A Igreja Universal do Reino de Deus destacou em seu site um artigo que questiona o média-metragem em que "o Senhor Jesus é retratado como um adolescente indeciso em relação à Sua missão na Terra, que usa drogas, tem um relacionamento homossexual com o diabo e acredita que Deus é seu tio". 

Um Deus, ressalta o texto, "arrogante e debochado, que despreza José e tem um romance extraconjugal com Maria, retratada como promíscua e interesseira". 

Deputados ligados a bancadas religiosas fustigaram a produção, e um abaixo-assinado no site Charge.org acumulava 1,2 milhão de assinaturas até a tarde de quinta (12). Pede "o impedimento do filme" por "ofender gravemente os cristãos". 

O parlamentar Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que é batista, deu seu pitaco. "Somos a favor da liberdade de expressão, mas vale a pena atacar a fé de 86% da população?"

O deputado Marco Feliciano (sem partido-SP) também se mostrou indignado. "Essa questão do Porta dos Fundos já passou do limite do razoável. Qualquer estudante de primeiro ano de direito sabe que nenhum direito é absoluto, nem mesmo a vida. Prova disso é que a Constituição permite a pena de morte em tempos de guerra”, diz à reportagem.
Desde o começo de dezembro no ar, a obra coleciona manifestações de repúdio que não se restringem a evangélicos.

Numa rede social, dom Henrique Soares, à frente da Arquidiocese de Palmares (PE), contou que cancelou sua assinatura no serviço de streaming. “Tinha que desfazê-la! Era o mínimo que poderia fazer! Desfi-la e senti-me feliz, contente, como quem presta uma homenagem a Alguém muito amado!"

Tido em alta conta por fileiras conservadoras do catolicismo brasileiro, o bispo questionou como é que pode, "em pleno tempo de preparação para o Natal do Senhor", a Netflix dar "um bofetão no rosto de todos os cristãos" e "cuspir na nossa cara, zombando da nossa fé". 

A Anaji (Associação Nacional dos Juristas Islâmicos), por meio de seu presidente, Girrad Mahmoud Sammour, engrossou a coalizão ecumênica contra Porta dos Fundos/Netflix.  

Os juristas muçulmanos, que têm Jesus como profeta, afirmam que a Constituição brasileira "deixa bem claro a proteção e respeito ao Sagrado". Se a Carta garante a liberdade de expressão, impõe a ela um "caráter relativo". Se atropelar o "ordenamento jurídico" e fomentar "aversões ou agressões a grupos religiosos", já era.

Sammour defende que é preciso ser solidário "aos nossos irmãos cristãos", já que "Deus diz no alcorão para nos auxiliarmos na virtude e piedade e não no pecado e hostilidade". 

"Todos os cidadãos de bem", portanto, estão convocados a denunciar os vídeos, "independente da religião, pois a liberdade deve ser para todos sem exceção, pois amanhã os injustiçados seremos nós". 

"Je Vous Salue, Marie", do francês Jean-Luc Godard, e "A Vida de Brian", do Monty Python, são exemplos de produções que revoltaram cristãos em décadas passadas. 

Em outros cantos do mundo, são muçulmanos que costumam protagonizar embates com grupos culturais. De tempos em tempos, ilustrações de Maomé acendem o pavio dessa polêmica. 
Para boa parte dessa comunidade religiosa, a representação de seu profeta máximo é uma das maiores ofensas à sua fé, capaz de provocar um ultraje tão grande quanto, digamos, ativistas que introduziram estátuas de Nossa Senhora em suas vaginas num protesto na visita do papa ao Brasil em 2013.

Caso de um jornal dinamarquês que, em 2006, publicou uma série de charges com Maomé —que, numa delas, tem no lugar do turbante uma bomba.

Sátiras assim anabolizam um preconceito generalizado contra a religião, reclamam muçulmanos. Por vezes, bastam para atentados terroristas como o que matou, em 2015, 12 pessoas na redação do Charlie Hebdo, semanário francês conhecido por tirar sarro de políticos e líderes religiosos.

"Eles [cristãos] sentiram na pele o que um muçulmano passa diariamente, de generalização quando uma célula podre faz algo de errado, de desrespeito ao nosso profeta", afirma Sammour à reportagem.

O presidente da Anaji enquadrou a produção como um catalisador de ódio. Por que retratar Jesus como gay seria isso? Ele responde: "Não há nenhuma indicação de que ele tenha sido homossexual, seja na Torá, no Evangelho ou no Corão. Estão criando algo que não existe, colocando as pessoas umas contra as outras".

O desagravo dos juristas islâmicos aos cristãos integra-se às chamadas guerras culturais, uma batalha no campo moral que costuma opor pelotões conservadores que se sentem ameaçados pelo que veem como uma horda progressista desprovida de valores "família". 

Serviu não só para dar liga a um front que uniu vários credos. Também deu corda para bicadas internas, como franjas católicas ultraconservadoras que indagaram por que a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) demorou tanto para se posicionar. 

O Templário de Maria foi um desses grupos. Ao sublinhar o apoio dos muçulmanos, publicou em letras garrafais: "CNBB se mantém calada". 

A entidade, por fim, falou. Na quinta (12), horas após ser procurada pela Folha, compartilhou uma nota assinada por seu presidente, dom Walmor Oliveira de Azevedo.
"Quando há desrespeito em produções midiáticas, os meios de comunicação tornam-se violentos, verdadeiras armas que contribuem para ridicularizar e matar os valores mais profundos de um povo", diz. "Não podemos nos deixar conduzir por atitudes de quem, utilizando a inteligência recebida de Deus, agride esse mesmo Deus."

Gregório Duvivier, que encarna Jesus no filme, evoca o britânico Mick Hume, autor de "Direito a Ofender". "Sim, esse conteúdo pode ser ofensivo. Mas ofensa é um critério totalmente subjetivo. Contrariamente à calúnia, o Estado não tem o direito de arbitrar sobre o que é por si só ofensivo porque isso não existe."

Continua Duvivier, que é também colunista da Folha: "O Velho Testamento, pra mim, é super ofensivo. Não pode tocar em mulher menstruada". 

O humorista lembra que o próprio Porta é uma feijoada de crenças. "Rafael Portugal [José, no filme] é evangélico. Antonio Tabet [que faz Deus] é espírita. Evelyn Castro [Maria] é católica. Eu, ateu praticante."

O que Duvivier diz que não consegue entender é por que, em 2018, "Jesus era mau caráter e não teve protesto, e neste ano ele é gay e fazem um escândalo". 

"Me entristece perceber que, pra muita gente, Jesus ser gay é uma ofensa, quando na verdade é uma característica", afirma

 Fábio Porchat, que interpreta o paquera do filho de Deus. "Muita gente diz que Jesus é branco, e ele não era. Característica. Mas estamos evoluindo, e a homofobia já é crime."
Tabet também se manifestou à Folha: "Acredito que meu Deus de amor, onisciente, onipresente e onipotente, tenha prioridades maiores que se ofender com um grupo de comediantes brasileiros. Dito isso, seria previsível que homens oportunistas e vaidosos, que acham que falam em nome de Deus mesmo sem procuração, queiram mobilizar fieis menos esclarecidos em torno de campanhas de boicote ou censura".

"No mais, a Netflix é uma plataforma de streaming. Você escolhe o que quer ver", diz Duvivier. "Isso não faz sentido."

Procurada, a plataforma não quis se pronunciar. Segundo Porchat, remover "A Primeira Tentação de Cristo" do ar, como pedem os opositores religiosos, "não é uma coisa nem que passou pela cabeça do Porta dos Fundos". 

A Netflix só confirma que a retirada não está em seus planos. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br