Vida Comunitária:  alguns elementos  antropológicos e psicogrupais.

Pe. Edenio Valle, SVD

 

Introdução

 

Neste texto pretendo  apresentar alguns elementos da chamada Psicologia social de grupo, com a intenção de ajudar as comunidades religiosas a considerarem com mais realismo e propriedade o que se passa em seu interior.

Quem conhece por dentro a realidade das comunidades religiosas sabe que essas são atravessadas pelas mesmas tensões que caracterizam qualquer outro grupo humano. Essas podem até superar as existentes em  outros grupos pelo fato de se proporem como meta a busca de um sentido espiritual mais exigente ( missão e partilha ) em uma instituição e estilo de vida centrados nos valores do Evangelho do Reino no seguimento de Jesus. .

Para entender essa aparente contradição entre um ideal tão elevado e uma realidade freqüentemente tão humana é importante conhecer melhor algo do que acontece em grupos humanos.  A presente reflexão  quer ser uma ajuda nessa direção. Conhecer melhor a realidade de um grupo não é uma garantia imediata para o amadurecimento das relações que aí se estabelecem, mas pode colaborar no sentido de tornar mais verdadeiros os objetivos que a Vida Religiosa se propõe como uma comunidade de discípulos/as de Jesus pautada pela comunhão, pelo respeito mútuo e pela solidariedade que tanta falta fazem à sociedade humana hoje ainda mais marcada pelo subjetivismo, pela massificação e o hedonismo consumista.   

 

  1. São muitos os objetivos, motivações e interesses que podem levar as pessoas a se organizarem em grupos dos mais diversos tipos. Ninguém pode viver sem estar de alguma maneira ligado a algum tipo de grupo. Isto é algo natural e necessário. De um modo geral tendemos a não prestar muita atenção ao que se passa em algo aparentemente tão “natural” ao qual fomos habituados desde a mais tenra infância já no seio de nossas famílias e culturas de origem. No entanto, os grupos humanos não são uma mera conseqüência das necessidades fisiológicas da sobrevivência de nossa espécie, como quer a Psicologia Evolucionária hoje em moda, por mais que essas pesem. Eles são construídos culturalmente a partir de uma complexa série de outras necessidades de natureza psicológica, social e cultural. São uma imposição também das necessidades econômicas. Nascem de interesses individuais, alguns extremamente narcisistas, que se contrapõem no dia a dia da vida grupal, tornando tensa a convivência. A dinâmica normal de um grupo é, por isto, marcada por um jogo sutil de forças que se atraem e se opõem. É nesse subsolo cheio de ambigüidades e aparências enganosas que se estabelece a trama afetiva dos processos reais de um grupo.
  2. O que os grupos humanos proclamam ser nem sempre bate com o que eles são de fato, psicossocialmente falando. Se tudo no jogo grupal fosse e saudável, as coisas não seriam tão sinuosas e contraditórias quanto são de fato. Freud mostrou que a família – o mais natural dos grupos, possui uma vida subterrânea, inconsciente, carregada de uma afetividade ambígua e instintiva que parece ter uma dinâmica bem distinta da que proclamam nossos idéias e ideais, especialmente quando infantilizados e não personalizados ). Os membros do grupo são capazes de sentir, captar e assimilar, quase que por osmose, as insinuações que vêm desse subsolo. Ter ou não consciência desse processo subjacente depende em grande parte da maior ou menor maturidade afetiva e interrelacional do grupo enquanto tal mas também  do amadurecimento de seus componentes  tomados individualmente. Trata-se de um clima emocional que resulta do que os participantes percebem dentro de si mesmos e transmitem uns aos outros em um sistema de sucessivos “feed backs”, reforçando em cada um a necessidade de encontrar alguma sintonia com os ventos que sopram no ambiente e que não raro são contrários. O clima grupal resulta, assim, largamente da projeção dos anseios, defesas e emoções subjetivas dos membros, embora esses estados subjetivos estejam ligados a certas situações, ações e reações objetivas ligadas a fatos externos que servem como causa deslanchadora dos sentimentos coletivos. A afetividade grupal é assim, a um só tempo, de natureza afetiva pessoal ( subjetiva )  e  de cunho psicossocial ( objetiva ). É a essa luz que devemos nos perguntar a respeito da qualidade psicoafetiva de nossas comunidades religiosas reais.

Ela tem também duas outras raízes de grande peso que não abordaremos aqui por falta de tempo: ela possui uma base bioquímica e neuropsicológica de enorme repercussão sobre o comportamento individual e coletivo e sobre ela pesam, também, elementos culturais diversos como os costumes, as crenças e os valores éticos, políticos e religiosos que influenciam o grupo. e a socieadade.

  1. A dinâmica afetiva do grupo costuma ser intensa; possui memória e mecanismos reativos próprios que são mais que a mera soma do que é sentido, dito ou proclamado pelo conjunto dos participantes. Não devemos, contudo, conceber essa afetividade como se fosse uma entidade psicológica que subsiste por se mesma quase que mágica e/ou metafisicamente. De um modo geral, pode-se afirmar que a afetividade costuma exercer nos grupos humanos um papel maior que as duas outras dimensões constitutivas do clima grupal: a cognitiva ( os processos da razão ) e a conativa ( a relativa à ação prática ). Em certas circunstâncias, o jogo afetivo grupal chega a parecer gozar de uma verdadeira autonomia como se tivesse vida própria. De fato, porém, ele reflete não só o que vai nas emoções e sentimentos dos membros do grupo e só pode ser compreendido em sua inteireza quando associamos esses elementos e motivações mais profundos aos demais processos que constituem o todo da personalidade de cada um e do grupo. Há aqui elementos estáveis e outros que têm duração passageira e podem se exacerbar positiva ou negativamente mas se situam sempre dentro das balizas do que é humano.  
  2. Além disto, não podemos olvidar que os grupos humanos, mesmo os mais amadurecidos e sintônicos, estão sempre submetidos a dois outros fatores, um muito amplo e, outro, extremamente concreto. Em primeiro lugar, eles experimentam todas as limitações próprias à incomunicação que os seres humanos vivem, na radical incompletude de seu existir. Esse fator tem uma influência nem sempre levada em conta pelas comunidades religiosas.  Mas, em segundo lugar, as pressões, influências e tensões próprias a cada época. Não à toa se fala muito na unidimensionalidade do sistema neo-capitalista que nos envolve institucional e engole ideologicamente. Essa funciona como a grande tenaz que prende os indivíduos e os grupos nas garras do “stress” econômico, político e social, conduzindo-os a reações fortes e inesperadas. Além do mais, provoca reações religiosas como as que assistimos nos países islâmicos ( homens bombas ) e que levam milhões de brasileiros a buscar arrimo grupal e solução para seus males pessoas no neo-pntcostalismo que nos foi presenteado pelo baixo protestantismo carismático de massa.

É importante lembrar, ademais, que os grupos ( os carmelitas, por exemplo ) têm uma história. Ou seja, eles também vêem de um processo: evoluíram, regrediram,  retrocederam e avançaram psicoafetiva e comportamentalmente ao longo dos tempos, mudando suas feições e características, devido às vivências e acontecimentos experimentados ao longo do tempo e dos quais guardam memória, mesmo que não consciente. Mas – fato fundamenta – há uma identidade por baixo de todos esses processos. Como a vida de uma pessoa, também essa identidade existe em função dos altos e baixos que a comunidade viveu. Só captando essas alternâncias é que podemos entender a gênese, a estrutura e as funções que caracterizam o modo peculiar de ser e de reagir desse ou daquele grupo.

  1. No momento cresce na Vida Consagrada a consciência da importância da comunidade e da vivência grupal para a realização do que a Vida Religiosa se propõe no presente momento de sua história. Estamos em busca de uma nova figura histórica. Por essa razão nossas concepções a respeito da vida em comunidade já não são tão homogêneas quanto o eram no passado. Tomamos consciência de que um grupo de pessoas que, por razões religiosas profundas, se propõe viver segundo um estilo de vida, valores e objetivos marcados pelo ideal evangélico não permanece sempre o mesmo e precisa amadurecer psicossocialmente se quiser tornar real o ideal carismático profundo que o constituiu em um passado mais remoto e que hoje é buscado de maneiras social e culturais bem diversas.. Constata-se hoje nas congregações um grande desejo de tornar mais “verdadeira” a unidade e a amizade que deveriam ser um sinal evangélico para o mundo dividido que nos cerca. Do desejo ideal à concretização, porém, percebemos cada vez mais que vai uma enorme diferença. Daí a urgência sentida por muitos de métodos mais acurados de análise dos  processos e mecanismos que se dão no seio de nossos grupos de vida e trabalho. Essa é uma condição sine qua non para a concretização do que tão belamente dizem os documentos da Igreja e as Constituições de nossas várias famílias religiosas.