Vocação, espiritualidade e carisma

*Dom Frei Vital Wilderink, O. Carm

 

A título de corolário é oportuno insistir na íntima ligação que existe entre vocação, espiritualidade e carisma, embora cada um desses três termos acentue determinados aspectos de uma realidade única que é a relação do ser humano com Deus, relação que atinge o núcleo da existência humana. Na vida prática, é feita com certa facilidade a passagem de uma expressão para outra. Assim fala-se indistintamente de espiritualidade, vocação e carisma do Carmelo. Como já foi observado anteriormente,  a nossa reflexão se move na perspectiva judaico-cristã que supõe a fé na intervenção histórica do Deus transcendente. A espiritualidade cristã aparece como a resposta humana à iniciativa divina: o que abre o horizonte da vocação.  Em religiões não-cristãs, principalmente na Ásia,  não se coloca geralmente, um Absoluto fora da consciência e independente do desejo humano. Assim o monge hinduísta não segue uma vocação, ele é alguém que viu, experimentou, viveu o real. É o caminho da imanência que, como vimos, possui aspectos positivos porquanto, também, na espiritualidade cristã,  reconhece-se uma aspiração antropológica para uma plenitude, uma tendência do espírito para a totalidade do ser. Há, portanto, uma estrutura psico-espiritual preexistente, embora seja difícil definir a essência dessa capacidade humana de acolher a gratuidade do chamado de Deus.

“Espiritualidade” é uma palavra que, conforme o dicionário Houaiss, aparece  no vocabulário da língua portuguesa no século XV.  O significado da expressão original em latim spiritualitas - como também o adjetivo spiritualis -  passou por uma evolução.[1] Remonta à palavra hebraica ruah que na Bíblia tem vários sentidos conforme o contexto. Em grego e latim é traduzida por pneuma/spiritus.  Quando atribuida a Deus ruah indica o sopro ou espírito de Deus enquanto atua na criação: o espírito de Deus cria e recria, liberta, salva. O ser humano arrastado pelo força do demônio, é transformado: “O Espírito socorre nossa fraqueza ... E aquele que sonda os corações sabe o que o Espírito pretende quando suplica pelos consagrados de acordo com Deus” (Rm 8, 26-27).  Nesta libertação fundamental do homem, o papel de Jesus é central: “Ele vos batizará com o Espírito Santo” (Mc 1,8). É nesta perspectiva que Paulo descreve a tensão de luta entre espírito e carne. Na carta aos gálatas Paulo descreve as obras da carne em oposição aos frutos do Espírito (Gl  5,16-24). Ao homem espiritual opõe-se o homem carnal. A palavra spiritualitas, como substantivo, aparece raramente para indicar esse processo de transformação do homem que não é dispensado da própria colaboração para progredir nessa caminhada a fim de atingir a meta final.

Na Idade Média, por influência do dualismo do pensamento grego, a palavra spiritus é cada vez mais reservada para significar a esfera luminosa das coisas celestiais em oposição à escuridão da realidade material, corporal, natural. Este deslocamento do significado vai se estendendo também do ponto de vista sociológico: poder da Igreja versus poder civil, clero-leigos, bens espirituais-bens materiais. Espiritualidade é o terreno do coração, da interioridade, das intenções da vontade. São expressões em que as acentuações afetivas e psicológicas desempenham um papel muito importante. Nos séculos XVI e XVII essa mudança do significado chega a reservar o qualificativo espiritual às pessoas que levam uma vida cristã mais profunda. Devido à íntima ligação entre as expressões espiritualidade e mística, e ao fato de certos místicos serem acusados de quietismo,  a desconfiança em relação à mística foi abrangendo também a espiritualidade. O conflito entre Bossuet e Fénelon, este último suspeito de quietismo, fez praticamente desaparecer, até o fim do século XIX, o uso da palavra. espiritualidade, para voltar nos primeiros decênios do século seguinte. É dessa época que datam algumas publicações científicas sobre espiritualidade de autores católicos, principalmente na França. É também neste país que, em 1928,  é publicado o primeiro fascículo do conhecido Dictionnaire de spiritualité. Reservada ao âmbito católico, a palavra transborda, na segunda metade do século XX,  o leito da Igreja católica estendendo-se a tudo o que diz respeito à “vida espiritual” em qualquer visão religiosa mesmo independente de quadros institucionais. O que, sem dúvida, favorece o diálogo sobre espiritualidade, mas, ao mesmo tempo, dificulta uma definição do seu objeto. A publicação de uma grandiosa enciclopédia, iniciada nos Estados Unidos a partir de 1985, intitulada World Spirituality, pode manifestar que nem a espiritualidade escapou do processo de globalização.[2] Nós vamos na perspectiva da espiritualidade judaico-cristã que supõe.

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita- foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.

 [1] Cf. Kees Waaijman, o.c. pp. 358-363.

[2] Ver a crítica de Kees Waaijman  ao projeto dos redatores da enciclopédia World Spirituality, o.c. pp.3-5.