Frei Joseph Chalmers, O. Carm.

Ex-Prior Geral

             Somos os irmãos da Virgem Maria do Monte Carmelo. Nossa Ordem começou porque os eremitas latinos no Monte Carmelo quiseram reunir-se como uma comunidade de irmãos. Estes viveram e experimentaram por algum tempo um novo estilo de vida. Depois o apresentaram a Santo Alberto, Patriarca de Jerusalém, para que ele pudesse dar-lhes a aprovação eclesiástica. Quando a “formula vitae” de Alberto foi formalmente aceita e aprovada como uma Regra pelo Papa Inocêncio IV em 1247, os eremitas foram inseridos no novo movimento dos mendicantes, muito forte na Europa daquele tempo. Os eremitas carmelitas se tornaram frades, chamados ao serviço do povo. Uma das características dos mendicantes era que eles viviam no meio do povo e não em grandes mosteiros como os monges.

             Apesar de que a Ordem é claramente chamada ao apostolado ativo, a contemplação continua sendo um elemento fundamental de nossa vocação. Nós nos entendemos como comunidades contemplativas a serviço do povo de Deus no meio do qual vivemos. Graças a Deus já passamos o tempo em que buscávamos nossa identidade. Podemos dizer que a nossa identidade está clara e definida nas Constituições! Agora é só viver coerentemente o nosso carisma no dia-a-dia.

             Como carmelitas devemos viver em obediência a Jesus Cristo e servir-lhe fielmente com um coração puro e reta consciência. Isto deve ser feito através do compromisso de buscar o rosto do Deus vivo (a dimensão contemplativa da vida), em fraternidade e no serviço (diakonia) no meio do povo (Const, 14). Estes três elementos estão estreitamente ligados entre si pela experiência do deserto, que é a experiência da ação purificadora de Deus em nossas vidas. A contemplação determina a qualidade da nossa vida fraterna e do nosso serviço no meio do povo de Deus (Const, 18). A meta da contemplação é a de sermos transformados em Deus, ou seja passar a ver a realidade com os olhos de Deus e amar com o seu coração (Cf. Const, 15).

             Uma atitude contemplativa nos permite descobrir a presença de Deus nos outros e apreciar o mistério daqueles com quem partilhamos nossas vidas (Const, 19). Somos chamados a viver em comunidade, para partilhar nossas vidas com os outros, mas sobretudo com nossos irmãos e é isto em si mesmo um testemunho para outros, que Deus está presente em nosso meio e através deste testemunho Deus tocará os corações de muitas pessoas.

             Pode-se discorrer de uma maneira muito bela e romântica sobre a comunidade e sobre o seu significado teológico, mas todos sabemos que a realidade de uma comunidade religiosa é algo muito diferente. Nossas comunidades refletem a realidade da Igreja e do mundo em que vivemos. Somos pecadores redimidos e tentamos fazer a vontade de Deus. Não somos perfeitos como indivíduos e por conseguinte ainda não podemos ter comunidades perfeitas.

             No mundo de hoje há uma sede de se viver em comunidade, porém contraditoriamente o individualismo está crescendo. Esta contradição está presente em nossas próprias vidas, porque somos diretamente afetados pelo mundo em que vivemos. Somos atraídos pela comunidade, mas ao mesmo tempo somos tentados a colocar nossas próprias necessidades e desejos sobre todas as coisas, a julgar tudo pelo modo como somos afetados. Viver em comunidade não é fácil e ainda que estejamos comprometidos a viver em comunidade, é crucial reconhecer a tendência que existe em todos nós de iludir suas demandas e encerrar-nos em nossos próprios egoísmos. Esta é a realidade de pecado em nossas vidas, mas somos redimidos. Claramente a redenção alcançada por Cristo para nós não nos fez santos ainda; estamos a caminho. Cristo nos oferece uma maneira de crescer além de nossas limitações, devemos, porém, aceitar a salvação que ele oferece. A primeira fase é reconhecer que nem tudo está bem.

             Como está a experiência de vida em nossas comunidades carmelitas? “A multidão dos que creram tinha um só coração e um só alma e nenhum tinha por própria coisa alguma, mas tinham tudo em comum.” (Atos 4,32). Se esta é experiência de vida na comunidade de vocês, vocês são verdadeiramente felizes, mas suponho que esta não seja experiência real aqui e em qualquer outra comunidade da Ordem. Eu diria que o melhor que se pode dizer é que a comunidade é bastante agradável e que vocês chegaram entre si a uma aceitação mútua de uns aos outros. Na pior das hipóteses... pode ser muito difícil e uma realidade muito diferente da que buscamos e que escapa em cada oportunidade. Por que nossa comunidade não é perfeita? Podemos jogar a culpa no Provincial e seu Conselho ou culpar ao irmão X de nossa comunidade. Podemos culpar os nossos irmãos com quem é impossível formar uma verdadeira comunidade apesar de nosso desejo. Poderíamos também tentar culpar até mesmo a Deus, mas se só culpamos aos outros e nos excluímos de qualquer culpa, devemos começar a pensar sobre a possibilidade de que, pelo menos em parte, talvez os causadores de problemas sejamos nós mesmos. É possível também que os outros nos achem pessoas difíceis de convivência e que em seus corações nos culpem pela falta de comunidade real.

             Nós vivemos juntos, mas temos experiências muito diferentes. Entramos na comunidade com nossa própria e particular experiência de vida que nos marcou para bem ou para mal. Chegamos na comunidade com nossa própria carga e comumente com expectativas muito diferentes. Podemos usar a mesma palavra “comunidade”, mas podemos querer dizer coisas muito diferentes. Eu creio que o primeiro passo para melhorar nossa vida de comunidade é aceitar que nós somos diferentes e que buscamos coisas diferentes. Necessitamos aceitar-nos em toda nossa diversidade e tentar ver nesta realidade humana algo da riqueza de Deus. Cada indivíduo é na verdade um mistério. Precisamos aceitar o fato de que alguns indivíduos estão tão profundamente marcados pelo vaivém da vida que não podem viver uma vida normal. Quando sua conduta causa danos à vida da comunidade, alguém deve falar-lhe honesta e diretamente sobre sua conduta. Os responsáveis devem oferecer a estes indivíduos a possibilidade de encontrar uma ajuda para viver uma vida mais equilibrada. Sei que isto não é fácil, mas o resultado de não desafiar o indivíduo “difícil” sobre sua conduta imprópria será que ele continuará a infernizar a vida comunitária. Pessoas como estas são uma minoria, mas todos nós precisamos, de vez em quando ser desafiados para permanecermos fiéis à vocação a que fomos chamados. Este desafio pode vir constantemente a nós através da vida diária com os outros. Pregamos o Evangelho, mas a comprovação de nossas palavras estão em nossos atos. É muito fácil amar a um vizinho, se não temos vizinhos. A forma como realmente vivemos em comunidade, nos dirá se realmente somos homens de oração e manifestará a verdade aos demais. A autenticidade de nossa oração será óbvia através de nosso contato diário com nossos irmãos.

             Ainda que viver a realidade da comunidade não é tarefa fácil, é a maneira que Deus escolheu para nós. Se a vocação não é algo imposto em nós desde o exterior e sim parte de nossa realidade interior, que descobrimos pouco a pouco, então o desejo ardente da comunidade e a habilidade de vivê-lo está escrito no profundo de nosso ser. Por causa da nossa natureza decaída, temos coisas fora de equilíbrio mas os elementos da vida de comunidade podem ajudar-nos a crescer, se desejamos seguir a Cristo no deserto.

             Não há ganho sem dor. Crescer é doloroso, mas a dor nos torna homens maduros. Há um sério perigo na vida religiosa de se permanecer imaturo por toda a vida. Recebemos o que necessitamos da comunidade e tanto faz se trabalhamos ou não. Se somos pessoas difíceis, os outros nos darão tudo o que for possível para nos acalmar e para que possam ter alguma paz. Então seremos como crianças mimadas, mas não carmelitas. Seguir Cristo leva inevitavelmente à cruz de uma forma ou de outra. Isto não é um castigo, mas é a maneira pela qual Deus nos ajuda a tornar-nos o que Ele sabe que podemos ser. Através de nossa experiência de vida, Deus nos purificará e aparará nossas arestas. Não vamos gostar no momento, mas o resultado final vale a pena. Uma parte desta purificação acontecerá na nossa vida em comunidade. Queremos permitir a ação de Deus em nossas vidas ou queremos rechaçá-la e seguir a nossa vontade? Esta é a diferença entre trabalhar para Deus e fazer o trabalho de Deus. Trabalhar por Deus significa fazer o que queremos e assumir que isto é o que Deus quer. Fazer o trabalho de Deus pode ser muito diferente - fazer o que Deus realmente está buscando de nós, requer um discernimento cuidadoso e um escutar silencioso da voz sutil e doce de Deus que nos fala através das pessoas mais inesperadas.

             As Constituições assinalam os principais elementos de nossa vida que podem ajudar-nos a crescer como indivíduos e como irmãos (31). O primeiro está “na participação comum na Eucaristia, através da qual nos tornamos um só corpo, e que é fonte e cume da nossa vida e, dessa forma, sacramento da fraternidade.” Celebramos a Eucaristia em comum em nossas comunidades? Isto está prescrito em nossa Regra e era um exigência muito rara para os eremitas. Estou propondo uma Eucaristia comum não porque é parte de nossa Regra e sim porque é a maior ajuda que nós temos para construir nossas comunidades. Eu estou bem consciente de que se pode alegar todos os tipos de razões pelas quais a Eucaristia comum não é conveniente, mas onde há a vontade, encontra-se uma forma. Às vezes pode-se usar as necessidades do apostolado como uma desculpa para não se participar de atividades comunitárias. Neste caso necessitamos olhar nossas vidas com grande honestidade e perguntar-se: Que estou buscando? Que quero fazer com minha vida e que Deus quer de mim? Como se adapta meu estilo de vida com minha vocação Carmelita?

             O segundo elemento mencionado nas Constituições é similar ao primeiro, é a celebração comum da Liturgia das Horas. Pode ser que alguns de nós todavia estamos padecendo da experiência do passado onde em alguns casos, a comunidade reunida dizia muitas orações mas os membros individuais não se entendiam uns com os outros. Podemos utilizar a oração para “massagear” nosso próprio ego em lugar de ser uma abertura para a purificação e para a ação curativa de Deus, mas esse perigo não é uma razão para deixar a oração como indivíduos ou como comunidades. Santa Teresa de Ávila disse que com respeito à oração necessitamos ter uma determinação muito grande para seguir fazendo-a e nunca render-se. Se queremos louvar a Deus juntos como irmãos, a Igreja nos tem dado uma oportunidade preciosa por meio da Liturgia das Horas com a qual nos unimos com a Igreja inteira para oferecer a Deus o sacrifício de louvor. É por conseguinte possível reavivar nossas celebrações litúrgicas para que não se tornem rotineiras.

             O terceiro elemento mencionado nas Constituições para a edificação da comunidade é a escuta orante da Palavra. Esta é portanto parte da celebração da Eucaristia e da Liturgia das Horas, mas também se recomenda por meio da Lectio Divina, onde juntos lemos e refletimos a Palavra de Deus, damos nossa resposta a esta Palavra em nossas próprias palavras e em silêncio, onde permitimos à Palavra formar nossos corações e unificar-nos. Não podemos ter comunidades orantes se nós não somos indivíduos orantes. Cada um de nós é responsável pela saúde da comunidade. Ser piedoso não significa necessariamente dizer muitas orações, mas permitir que nossa oração transforme a nós e o modo como nós nos relacionamos com os outros.

             As Constituições reconhecem que necessitamos discutir preocupações comuns e por isto a reunião comunitária é um elemento importante na vida da comunidade. Se não discutimos as dificuldades que nos envolvem, elas se tornarão problemas que podem destruir a harmonia de qualquer comunidade. Na reunião comunitária tem que se tratar das coisas de cada dia, mas também os aspectos espirituais da vida da comunidade. Certas habilidades básicas são importantes para uma reunião da comunidade. Se vocês sabem que não as têm, ou desconfiam disto, por que um dos outros irmãos não pode organizar a reunião?

             Também as Constituições nos animam a partilhar a mesa e recreação em comum. Se nunca estamos juntos, nunca cresceremos em unidade. Se estamos juntos, por certo há um risco de conflito, mas se existe boa vontade para dialogar, estes problemas podem ser superados e podem ser de fato um elo de unidade entre nós. Cada um de nós deve examinar a própria consciência. Eu estou pronto a dialogar de verdade com meus irmãos? Tenho sempre razão e os outros nunca? É possível que algumas de suas críticas tenham algo de verdade? Neste caso que faço?

             Finalmente as Constituições nos animam a trabalhar juntos e partilhar nossas alegrias, nossas ansiedades e amizades. É importante celebrar as datas ordinárias juntos, como por exemplo: aniversários de nascimento, votos, ordenação, etc. Também é importante estar ali quando temos problemas. Sempre salvaguardando o direito da comunidade a ter sua vida privada, é muito bom partilhar os nossos próprios amigos pessoais com a comunidade.

             A comunidade religiosa é uma realidade humana e por conseguinte não é perfeita, mas é o ambiente em que somos chamados para responder ao amor gratuito de Deus para conosco. É o lugar privilegiado onde podemos crescer como seres humanos, como cristãos e como religiosos. Aceitemo-nos com todas nossas faltas, esforcemo-nos para amar-nos como Cristo nos amou e a valorizar os demais como irmãos e co-herdeiros do Reino de Deus. De vez em quando, por certo, não manteremos nossos ideais altos, mas essa não é uma razão para deixar estes ideais e conformar-nos com a mediocridade. Cristo prometeu estar conosco e podemos confiar nessa promessa. Se o permitimos, ele amará a nossos irmãos através de nós. Se nossa experiência de comunidade não tem sido boa, por que não tentamos seguir o princípio de nosso irmão, São João da Cruz que disse, “Onde não há amor, coloque amor e encontrará amor?” Se há amor dentro de uma comunidade, todos os obstáculos podem ser superados. A vida comunitária não será perfeita, mas saberemos que somos aceitos pelo que somos, o qual nos dará a confiança para ir ao encontro dos outros e partilhar esse amor com eles. Nossa vida comunitária levará o testemunho da verdade do Evangelho que Cristo rompeu as barreiras que separavam as pessoas entre si e que seu amor pode curar.

             Se desejamos correr o risco de amar a nossos irmãos, cumprimos o artigo de nossas Constituições que diz “A fraternidade, segundo o exemplo da comunidade de Jerusalém, é uma encarnação do amor gratuito de Deus e interiorizado através de um processo permanente de esvaziamento do ego centrismo – também possível em comum – para uma centralização autêntica em Deus. Assim, podemos manifestar a natureza carismática e profética da vida consagrada do Carmelo e podemos inserir harmonicamente nela o uso dos carismas pessoais de cada um a serviço da Igreja e do mundo.” (30).