A democracia brasileira venceu
Início do julgamento de Bolsonaro e corréus no STF é o fim da indulgência com o golpismo que manchou a história republicana do País e a afirmação da força da Constituição sobre seus inimigos
O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia hoje aquele que pode ser considerado, sem exagero, o julgamento mais importante de sua história. Estarão no banco dos réus o ex-presidente Jair Bolsonaro, ex-ministros de Estado e militares de alta patente que compõem o “núcleo crucial”, como classificou a Procuradoria-Geral da República, de uma tentativa de golpe com o objetivo de subverter a vontade popular manifestada nas urnas em 2022. É a primeira vez que um ex-presidente e membros de seu primeiro escalão enfrentam acusações tão graves à luz da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito – e com real perspectiva de condenação. Oxalá seja a última.
A originalidade do julgamento, no entanto, não se restringe às figuras diante de seus julgadores. De forma inédita, os dispositivos legais criados para substituir a famigerada Lei de Segurança Nacional serão aplicados por um tribunal civil em ação penal que envolve réus que tiveram grande proeminência política e militar no País. O simbolismo é inequívoco: a democracia brasileira, tantas vezes golpeada desde 1889, robusteceu-se a ponto de processar e julgar seus inimigos sem condescendência e, mais importante, sem recorrer a expedientes violentos. Trata-se de um enorme salto civilizatório.
É verdade que a condução dos inquéritos dos atos antidemocráticos e da Ação Penal (AP) 2.668 pelo STF não é isenta de falhas. A teoria da democracia defensiva, que norteou a resposta institucional da Corte aos ataques golpistas, por vezes resvalou em abusos, os quais este jornal não deixou de apontar e reprovar quando era o caso. A força da democracia reside no respeito à forma do Direito que a sustenta, vale dizer, na observância ao devido processo legal, mesmo, e sobretudo, quando em julgamento estão acusados de tramar para destruí-la. Mas, no geral, é de justiça reconhecer que o STF mais acertou do que errou, agindo com firmeza e celeridade. Fosse leniente, talvez já não vivêssemos sob a égide da Constituição de 1988.
Por óbvio que seja, é relevante notar que o julgamento só ocorre porque o golpe fracassou, fato que, por si só, atesta que a democracia já venceu seus inimigos, independentemente de seu desfecho. Fosse bem-sucedida a sedição, o STF não estaria exercendo hoje seu papel de guardião da ordem democrática, decerto teria sido rebaixado a mero aprisco de chancela judicial aos desígnios autoritários do sr. Bolsonaro e sua grei. Logo, o esperneio do ex-presidente pelas medidas cautelares a que foi submetido e pela eventual condenação faz parte de seu direito de defesa, mas não altera o principal: golpistas não serão anistiados de antemão, como tantas vezes ocorreu ao longo destes mais de 200 anos de Brasil independente, em especial militares. É do mais alto interesse das Forças Armadas, como instituições a serviço do Estado e do povo brasileiros, apoiar a condenação dos fardados que, comprovadamente, tomaram parte na intentona.
Nesse sentido, a comparação com os EUA é incontornável. O golpismo do presidente Donald Trump contou com a complacência de instituições que outrora foram a referência mundial de solidez institucional. Trump não só escapou de punição, como retornou à Casa Branca para um segundo mandato no qual promove com especial denodo a corrosão sistemática dos pilares que fizeram seu país ser o que – ainda – é. O Brasil trilha o caminho inverso.
Talvez por isso Trump esteja empregando o descomunal poder dos EUA para atacar o STF e salvar Bolsonaro de seu destino penal. Não por amizade, mas para impedir que no maior país da América Latina floresça um exemplo de resistência democrática que amplie o contraste com a genuflexão de parte das instituições americanas ao trumpismo. Poucos aguentariam essa pressão que o STF hoje suporta, mas, até aqui, a Corte dá mostras de firmeza exemplar.
Dito isso, convém não baixar a guarda. O julgamento é apenas o fim da etapa judicial de um lamentável capítulo de nossa história. Uma vez concluído, a pressão política por anistia aos eventuais condenados aumentará no Congresso. É preciso resistir a esse movimento de impunidade. Foi-se o tempo de acomodações e indulgência com golpistas nesta república que hoje, seja qual for o resultado do julgamento que se inicia, amanhece mais forte. Fonte: https://www.estadao.com.br




