Pode-se alegar, com razão, que retornamos ou que entramos numa nova era de imposição de força

 

Por Cláudio Finkelstein

Vivemos numa era de conflitos globais. Israel e Ucrânia dominam os noticiários, mas há uma patente realidade de outros conflitos, seja no Sudão, Síria, Iêmen, Mianmar, Congo, com tensão na Índia e Paquistão. É o retorno da corrida armamentista hemisférica, uma espécie de paz armada contemporânea, num ambiente de medo, sem uma nação hegemônica disposta ou apta a instaurar uma nova pax romana. A guerra é detestável, sempre, mas é uma realidade inconteste e cada vez mais perceptível. Do Bill of Rights, de 1689, à Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, busca-se afirmar uma situação que estabeleça padrões mínimos de decência e proteção ao ser humano. É a “era dos direitos humanos” que lamentavelmente não mais se percebe. A violência internacional, assim como a doméstica, vem ocupando cada vez mais os noticiários e se aproximando de todos, sem uma resposta adequada.

Conforme alertado pela Cruz Vermelha Internacional, em 2024, havia ao menos 120 conflitos armados no mundo e, de acordo com o Relatório de 2024 do Conselho Norueguês de Refugiados, 66 milhões de pessoas afetadas por conflitos ou tragédias, sendo que 1.143.000 delas no Brasil. A triste constatação é que o imperativo da paz para uma grande parte da população global está longe de ser alcançado.

A realidade é que tratados, assim como decisões dos tribunais internacionais são cotidianamente desrespeitados, sem quaisquer consequências perceptíveis. Áreas residenciais, escolas, hospitais, parques e praças públicas tornam-se bases e campos de batalha, por vezes com escudos humanos e infrações ao Direito Humanitário de lado a lado.

Mercenários atuam livremente e com frequência são contratados por Estados. O limiar da tragédia é o poderio nuclear. Bombas atômicas não foram mais usadas desde Hiroshima e Nagasaki, mas seu poder destrutivo aumentou exponencialmente e a proliferação de nações que as detêm tornou-se o principal problema de segurança global. A guerra à distância não se limita a mísseis e drones destrutivos, envolve também preparação da inteligência e espionagem, ataques cibernéticos, manipulação do GPS e de sinal de internet, tão ou mais destrutivos, disruptores e mortíferos do que bombardeios.

Assim como a guerra, as relações políticas, culturais, sociais e econômicas evoluíram consideravelmente desde a segunda metade do século passado, causando inúmeras alterações nos costumes. Alguns evoluíram, outros involuíram. A guerra, infelizmente, evoluiu, ao menos tecnicamente e em poder destrutivo, com armamentos de destruição em massa e químicos e com táticas ainda mais devastadoras, forçando os Estados beligerantes a se adaptarem a essa nova situação, sem que as nações do globo discutissem suas repercussões jurídicas.

Lidar com esses conceitos passou a compor efetivamente a prática dos Estados em suas relações recíprocas, na maioria das vezes involuntária, impulsionada pelo medo de retaliações das nações hegemônicas. Diplomacia e política se imiscuíram no cenário externo, reconfigurando as relações com nações periféricas que não têm voz ativa ou representatividade no atual cenário global.

Afinal, nada desta triste realidade existia à época da negociação das Quatro Convenções de Genebra de 1949. As relações de força entre os blocos capitalista e socialista eram parelhas e o “terceiro mundo” não tinha lugar de fala. O conceito de ameaça existencial não era regulado, tampouco o de ataque preventivo, guerra por procuradores ou a imposição unilateral de sanções, noções que com o passar do tempo passaram a integrar o cotidiano de várias nações, mas estranhas ao Direito da Guerra. O comércio se fortaleceu com a Organização Mundial do Comércio e viu sua derrocada a partir de 2020, escalado agora com o protecionismo da era Trump II. A ONU tornou-se refém de cinco Estados com interesses ambíguos e antagônicos, restando como foro de negociações, mas sem um ordenamento necessário ao exercício de sua função básica: manter a paz no globo.

Na visão do Direito das Gentes, o costume nas relações internacionais, mesmo que imposto à comunidade global, mas praticado consistentemente há décadas, passa a integrar o Direito Internacional, devendo ser considerado por todos. É indiscutível que o costume é uma fonte primária de Direito e que a dinâmica do Direito Internacional não reconhece escala hierárquica entre suas fontes primárias, podendo o costume, inclusive, revogar qualquer tratado ou prática anterior. E essa é a nossa realidade. Pode-se alegar, com razão, que retornamos ou que entramos numa nova era de imposição de força, de bullying institucionalizado, do direito do mais forte, em que o conceito ocidental de “nação responsável” é decidido a portas fechadas. É lamentável constatar tudo isso, mas é essencial discutir esses novos contornos do Direito Internacional para entender essa realidade e combatê-la. Fonte: https://www.estadao.com.br