Manifestações dissonantes e incômodas, mesmo quando incivis, são parte do custo da democracia

 

Por Júlio Barroso e Leonardo Gomes Penteado Rosa

A despeito de o Brasil não possuir uma tradição lá muito robusta de liberdades civis, a redemocratização galvanizou o desejo do País de abandonar a censura e a promulgação da Constituição de 1988 inaugurou esperanças de desenvolvimento de uma cultura política tolerante e afirmativa das liberdades fundamentais.

Quase 37 anos depois da promulgação da Constituição, contudo, um conjunto heterogêneo de decisões judiciais recentes delineia um cenário pouco auspicioso para a liberdade de expressão. A inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da internet, decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), abre as portas para a trivialização da censura terceirizada e sem critério para as plataformas. Em fins de 2024, decisão monocrática do mesmo tribunal ordenou a retirada de circulação de obras jurídicas por objetar seu conteúdo. Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou um semanário a indenizar ministro do STF, afirmando que a publicação abusou da ironia na crítica ao ministro. Em instâncias inferiores, tivemos condenação de jornalista por divulgar salários de desembargadores. Poderíamos continuar enumerando casos afins, mas esses exemplos já são suficientes para evidenciar um panorama pouco amigável para aquela que podemos considerar a rainha das liberdades públicas, sem a qual as demais tendem a murchar. É especialmente preocupante que tais restrições venham justamente de diferentes instâncias do Judiciário, poder ao qual, no sistema brasileiro, cabe proteger as liberdades fundamentais, se necessário de modo contramajoritário e contra o clima dominante de opinião.

Defensores das medidas restritivas objetam apontando a moralidade nefasta nas expressões censuradas: em alguns casos, isso é inegavelmente verdade. No entanto, essa justificativa, além de excessivamente genérica, assume que ao Judiciário cabe uma espécie de tutela moral dos cidadãos. É preciso mais do que reprovação moral do conteúdo da expressão para justificar a censura. Não se trata aqui de defender uma versão “absolutista” da liberdade de expressão – sequer há quem defenda que a expressão jamais deve ter limites. Trata-se de reconhecer que, neste assunto, o Judiciário tem sido excessivamente restritivo e arbitrário.

O excesso de restrição deve-se, em parte, ao mal-entendido segundo o qual a liberdade de expressão deve ser constrangida pelo dever de civilidade. Uma importante função da liberdade de expressão é salvaguardar o debate público, que, pela sua natureza, costuma ser áspero (embora não tenha de sê-lo sempre). O dever moral de civilidade jamais deve ser imposto como uma obrigação jurídica, justamente por ser incompatível não com uma medida “absolutista” da liberdade de expressão, mas com parâmetros internacionais elementares de entendimento dessa liberdade em democracias. Lembremo-nos de que direito é, fundamentalmente, regra. Um bom teste para a regra que se aplaude é colocar-se do outro lado do balcão e pensar como os próprios adversários poderão aplicar aquela regra se e quando chegarem ao poder.

Já a arbitrariedade resulta da indisposição e da incapacidade dos tribunais de estabilizar regras de interpretação da liberdade de expressão. Cabe ao Judiciário – especialmente aos tribunais superiores – estabelecer em jurisprudência critérios bem delineados e regras claras de intervenção que se apliquem isonomicamente a todos. Diante do caso concreto, o espaço decisório de cada juiz é hoje quase total, e muitas vezes os magistrados simplesmente mencionam o contravalor de sua preferência como razão suficiente para a censura.

Para agravar o quadro, há outro mal-entendido: a liberdade de expressão foi capturada na polarização política que vive o País. Parte da direita faz uma defesa instrumental e retórica dessa liberdade, enquanto parte da esquerda acredita que a bandeira pertence de fato a seus adversários (exceto quando se vê censurada). Tem sido quase universal a disposição para aplaudir a censura dos adversários políticos enquanto se reivindica liberdade para seu próprio lado. Em outras palavras, a fronteira entre a censura vista como legítima e a ilegítima quase sempre coincide com a clivagem que polariza o País. A censura do que penso é censura, mas a censura do outro é democracia ou justiça. É um equívoco político. Apesar de a liberdade não se vincular a uma agenda política substantiva, foi e continua sendo crucial para dissidentes e lutadores sociais das mais variadas estirpes. Mas não há uma liberdade “de esquerda” ou “de direita”: o que a liberdade de expressão promete é preservar o caráter aberto do sistema político. Manifestações dissonantes e incômodas, mesmo quando incivis, são parte do custo da democracia.

Esperamos que a atual crise judicial da liberdade de expressão no Brasil seja apenas um soluço e que a sociedade brasileira e suas instituições se reconciliem com essa liberdade, reconhecendo-a como o pilar fundamental do regime democrático, com o qual essa liberdade se confunde. Fonte:  https://www.estadao.com.br