Bolsonaro mobiliza multidões ao capitalizar o ressentimento de muitos brasileiros. É fácil chamá-los de ‘golpistas’; difícil é admitir que abusos em nome da democracia alimentam esse azedume

 

As manifestações convocadas por apoiadores de Jair Bolsonaro no dia 3 passado revelaram, mais uma vez, a notável resiliência do populismo reacionário no Brasil. Embora envolto em escândalos e acusado de liderar uma conspiração golpista, o ex-presidente segue mobilizando parcelas expressivas da opinião pública. Compreender a capacidade de Bolsonaro de convocar multidões, mesmo submetido a tornozeleira eletrônica e em meio a uma ação penal no Supremo Tribunal Federal (STF), exige mais do que sarcasmo ou desprezo. Exige inteligência. Exige, sobretudo, que se investiguem as causas profundas da permanência desse movimento, que, a despeito de sua agenda antidemocrática, segue se retroalimentando de ressentimentos reais, abusos institucionais e frustrações legítimas.

A tragédia da república brasileira é que seus principais adversários se enxergam como encarnações do Bem. Em nome da civilização contra a barbárie, justificam-se arbitrariedades. Em nome da democracia, tolera-se a censura. Em nome da justiça social, contorna-se a lei. Em nome do combate ao autoritarismo, redobra-se o autoritarismo. É esse ciclo de descomedimento, intransigência e pretensão ao monopólio da moral que alimenta, do lado oposto, o mesmo espelho deformado. O Brasil segue refém de duas formas de radicalismo: uma grotesca, a outra presunçosa. Ambas se enxergam como o lado certo da História. Ambas agem como se estivessem acima da lei.

Jair Bolsonaro e seus filhos e aliados responderão, com razão, por tentativa de golpe de Estado e por mobilizar um governo estrangeiro contra instituições nacionais. Os indícios reunidos evidenciam que o clã Bolsonaro cruzou linhas vermelhas. Mas também é indisputável que o STF, notadamente por meio do ministro Alexandre de Moraes, cruzou inúmeras outras. O Supremo transformou-se em ator político de primeira ordem, instituiu inquéritos sem objeto definido, decretou prisões preventivas abusivas, censurou jornalistas e age com tamanha ambivalência hermenêutica que a interpretação de suas próprias decisões passou a depender do humor de seus ministros. O dedo do meio de Moraes no camarote de um estádio de futebol resume o ethos de um STF que confunde coragem com prepotência e mandou às favas a virtude da prudência.

Essa metamorfose da Corte em órgão de vanguarda, fiador do governo e promotor de causas identitárias não é indiferente à polarização política. Ela a inflama. Como também o faz a esquerda no poder, incapaz de aprender com os erros do passado. O PT, em especial, nunca fez a autocrítica exigida por sua responsabilidade nos escândalos que solaparam a credibilidade do sistema político. Sua resposta à oposição tem sido a de escorar-se no Supremo e apostar no discurso que opõe ricos e pobres. Sua visão de mundo permanece calcificada numa moral binária, que reduz adversários e dissidentes a “fascistas” e inviabiliza esforços de conciliação.

Parte considerável das elites intelectuais também perdeu o senso de proporção. A hegemonia progressista nas academias, redações e classe artística multiplica manifestações de escândalo moral contra críticos conservadores, mas é permissiva com os abusos cometidos por aliados. Cultiva uma retórica de superioridade moral que transita entre o iluminismo autoproclamado e o escracho público. Com isso, não apenas se aliena de amplas parcelas da população, como contribui para desmoralizar a indignação legítima, franqueando munição a quem sabe instrumentalizar ressentimentos.

Não se combate o populismo reacionário com populismo judicial ou messianismo progressista. Nenhum excesso de um lado justifica os do outro. A democracia exige o fim dos ciclos de vingança. Um novo pacto institucional, fundado na responsabilidade recíproca, na pluralidade e no respeito à lei, é condição para restaurar a confiança dos cidadãos na República. O combate ao golpismo deve ser firme, mas também exemplar. Não só na pena, mas na forma. Porque é a forma, no fim das contas, que distingue a justiça da revanche. Fonte: https://www.estadao.com.br