Grupo Wagner é visto a 350 km de Moscou e domina quartel-general em Rostov-do-Don, na maior crise interna do governo do russo

 

Igor Gielow

BRASÍLIA

A crise provocada pela maior rebelião militar em solo russo desde os anos 1990 escalou neste sábado (24), com a ampliação de combates e o presidente Vladimir Putin prometendo esmagar o levante dos mercenários do grupo Wagner, liderado por seu agora ex-aliado Ievguêni Prigojin.

As forças do rebelde, por sua vez, tomaram controle do quartel-general e bases do Comando Militar do Sul, em Rostov-do-Don, no sul do país, além de estruturas do Comando Militar do Sul —peça central na engrenagem da Guerra da Ucrânia, na qual o Wagner lutou e que agora é criticada por Prigojin.

As informações são escassas, mas vídeos e relatos apontam que forças do Wagner já operam ativamente em Voronej, a região logo acima de Rostov. Helicópteros russos foram alvo de baterias antiaéreas do grupo, e um comboio foi explodido numa estrada. No meio da tarde, fim da manhã no Brasil, o governador da região imediatamente ao norte, Lipetsk, a meros 350 km de Moscou, disse ter visto forças de Prigojin.

Segundo o blogueiro militar Rybar, conhecido por suas conexões com a Defesa, há cerca de 300 veículos no comboio em Lipetsk.

Não se via tal movimentação na Rússia desde que o presidente Boris Ieltsin lidou à bala com uma revolta parlamentar em 1993 e nas duas guerras de secessão da Tchetchênia, em 1994-1996 e 1999-2000.

"Ambições excessivas levaram à traição. É um golpe contra a Rússia e seu povo. Nossas ações para proteger a pátria-mãe serão duras", disse Putin. Todos que entraram deliberadamente no caminho da traição, que prepararam uma rebelião armada, que adotaram o caminho da chantagem e métodos terroristas irão sofrer a punição inevitável."

Ato contínuo, assinou um decreto permitindo a prisão por 30 dias de quem quebrar regras da lei marcial, imposta desde o ano passado nas quatro regiões anexadas ilegalmente na Ucrânia. Há um regime de alerta máximo valendo nas áreas da Rússia afetadas pelo motim, mas por ora não existe lei marcial em vigor no país, quando há restrição de liberdades civis.

O presidente falou em rede nacional de TV no começo da manhã deste sábado, madrugada no Brasil, e estava visivelmente irritado. Prigojin, afinal, era conhecido até há pouco como "o chef de Putin", responsável pela alimentação do Kremlin desde os anos 2000 e, desde 2014, dono de um crescente exército particular a serviço do líder.

Em uma concessão à gravidade da situação, Putin afirmou que "este é o mesmo tipo de golpe que a Rússia sentiu em 1917". "Intrigas e politicagem nas costas do Exército e do povo levaram ao maior choque, a destruição do Exército, o colapso do Estado, a perda de muitos territórios e, no fim, a tragédia e a guerra civil. Russos mataram russos, irmãos mataram irmãos."

Ele se referia aos passos que levaram ao golpe bolchevista que derrubou o governo que havia removido o czar do poder, em 1917, levando à Guerra Civil Russa, que matou milhões até a formação da União Soviética, em 1922.

Logo depois da fala, Prigojin foi ao Telegram e mudou seu tom, criticando pela primeira vez o ex-chefe —até aqui, só havia atacado a liderança militar, a começar pelo ministro Serguei Choigu, da Defesa. "O presidente comete um grande erro quando fala em traição. Somos patriotas, estamos lutando pela pátria-mãe. Não queremos corrupção. Estamos prontos para morrer."

Em campo, foi como se a guerra no país vizinho tivesse recomeçado. "Passei a madrugada em claro. Onde moro, no sul de Rostov, as coisas estão calmas, mas as ruas estão bem vazias. No centro, o governo pediu para ninguém ir, e eu não arrisquei", afirmou Ivan, um comerciante da cidade centro da crise que pede para não ter o sobrenome identificado.

Quem arriscou captou imagens com celulares que agora correm o mundo, de soldados do Wagner cercando o quartel-general da Polícia Nacional e de pelo menos dois tanques, além de diversos blindados que o grupo usou na Ucrânia, nas ruas da região central.

Há relatos esporádicos de combates, e um helicóptero russo Mi-8 foi derrubado perto de Rostov-do-Don na madrugada. Prigojin disse que tomou o quartel-general do Comando Sul sem resistência, o que parece ser verdade.

O Wagner quer levar seu motim para a região imediatamente acima da de Rostov, Voronej. Ao menos uma coluna de veículos do grupo foi vista na capital regional, segundo blogueiros militares russos. Prigojin disse já controlar algumas unidades militares na cidade, mas não há confirmação disso.

Na região, houve uma grande explosão em um depósito militar de combustível. Aqui, há duas versões: uma de que o combustível pertencia ao Wagner, em apoio à sua ação no leste da Ucrânia, e foi atingido pela Força Aérea russa. A outra, de que foram os mercenários que atearam fogo ao local.

A rodovia M4, que liga todo o sul russo a Moscou e desde que o espaço aéreo da região foi fechado no início da guerra, em 2022, é sua única via de acesso, foi bloqueada em Voronej. Se o Wagner quer levar sua rebelião à capital, tem de ser por lá, e se suas forças estão em Lipetsk, está tendo algum tipo de sucesso.

Em qualquer caso, esta constitui a maior crise já enfrentada por Putin após sua chegada ao poder, em 1999. Naquele ano e no seguinte, derrotou os separatistas tchetchenos e instalou a dinastia dos Kadirov no país muçulmano, mas em nenhum momento houve um desafio parecido às suas Forças Armadas.

Não sem ironia, o atual ditador tchetcheno, Ramzan Kadirov, poderá ser chamado para o combate contra o ex-aliado Prigojin. Em rede social, ele afirmou que suas forças estão prontas para intervir a pedido do Kremlin, se necessário.

Ele também é rival de Choigu, mas compôs com o ministro quando a Defesa decidiu enquadrar os mercenários, obrigando-os a assinar contratos. Isso foi a gota d'água da rixa de meses entre Prigojin e os militares, marcada por acusações de boicote ao esforço do Wagner, que tomou Bakhmut, em Donetsk, única vitória expressiva russa neste ano.

Apesar da gravidade da crise, não há ainda expectativa de golpe contra Putin, ou mesmo o tamanho da erosão de sua autoridade é mensurável agora. Em Moscou, após a tensão da madrugada, com imagens de veículos militares nas ruas que evocavam os acontecimentos de 1993, a situação é calma.

Segundo relatou à Folha um jornalista, que também pede anonimato, as ruas elegantes em torno do Kremlin, como a Tverskaia, estão com frequência normal para um sábado. A praça Vermelha permanece com acesso fechado, contudo, mas sem uma presença policial muito diferente da normal.

No sul da cidade, entretanto, o jornal Vedomosti disse ter visto soldados montando um ninho de metralhadora junto a uma rodovia, uma precaução previsível na capital, que já tem instaladas baterias antiaéreas contra os ataques pontuais de drones ucranianos.

Há a questão da força militar. Prigojin diz ter "25 mil homens, e mais 25 mil a qualquer momento", sugerindo espalhar sua sublevação. Até aqui, porém, isso não foi visto, e seu principal aliado no alto escalão militar, o general Serguei Surovikin, pediu que ele desista do motim e se entregue.

Para o "chef de Putin", as opções são poucas se não tiver adesão. Sem Surovikin e se não alcançar a soldadesca em quartéis, está fadado a ver sua revolta ser asfixiada. O processo já aberto contra si pelo temido serviço de segurança FSB pode lhe dar 20 anos de cadeia, mas o dano à imagem de Putin e seu governo em um momento delicado ainda terá de ser medido.

Os adversários mais diretos aproveitam. O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, postou no Twitter a avaliação de que a crise mostra "a fraqueza da Rússia" e conclamou a "comunidade internacional" a agir contra Putin.

Nos Estados Unidos, patronos de Kiev, a ordem é de cautela. O presidente Joe Biden está, segundo a Casa Branca, acompanhando os acontecimentos. Por mais que o país queira ver o rival de joelhos, não é do interesse americano uma instabilidade militar na única potência nuclear que faz frente a Washington.

Do outro lado, o líder russo falou por telefone com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que lhe ofereceu total apoio na crise. A Turquia, apesar de integrar a Otan e apoiar a Ucrânia, é próxima da Rússia e busca papel de mediação na guerra. Outros países aliados do Kremlin expressaram apoio, como Irã e repúblicas centro-asiáticas.

Há, ainda, o risco de toda a crise, se debelada, levar a um endurecimento ainda maior do regime e das ações militares na Ucrânia, até como forma de mostrar força aos adversários. Nesta noite, por exemplo, foram lançados 51 mísseis de cruzeiro contra cidades ucranianas, o maior ataque em algumas semanas. Três pessoas morreram em Kiev, atingidas por destroços de projéteis abatidos.

Até aqui, apesar de Prigojin ter divulgado o vídeo que deflagrou sua revolta na sexta (23) criticando a guerra como um projeto da elite russa para tomar a Ucrânia, o Wagner não interrompeu ações russas. Aviões que participaram de ataques no vizinho levantaram voo normalmente da base de Rostov que suas forças dizem controlar. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br