Por Joaquim Ferreira dos Santos

O pastor Evraldo batiza Bolsonaro no Rio Jordão | Divulgação

Eu nasci há dez mil anos atrás e foi mais ou menos no início dessa jornada milenar que vi na Praça Quinze o profeta vestido de branco, uma barba comprida igualmente branca, tudo para dar a impressão de que acabara de saltar do papiro bíblico. Chamava-se Gentileza, escrevia “Deus” nas paredes, e com ele aprendi uma lição. O homem que diz sou, não é. Era só aparecer uma moça de minissaia e o profeta corria atrás da pecadora, gritando para que ardesse no fogo dos infernos. As aparências enganam. Gentileza era puro ódio.

O Brasil é a república dos falsos profetas, dos santos de pau oco, a terra roxa onde, se plantando o medo de Deus no coração dos trouxas, tudo dá e será permitido. Tem bandido que não está nem aí para as aparências e vai sacando do revólver, “mãos ao alto”, exigindo que o otário lhe passe a grana. Há o de outro tipo que saca do coldre a ameaça divina, “Deus acima de todos”, para realizar sem derramamento de sangue os mesmos despropósitos. É o tipo que está no poder.

Não vai aqui qualquer blasfêmia contra Deus, em quem todos pomos fé irrestrita. O problema em 2020 é acreditar nos seus divulgadores. O governador, homem de bem flagrado na semana passada com a mão no bem alheio, faz o sinal da cruz sempre que passa diante de uma igreja. A pastora-deputada-evangélica com nome de flor, 55 filhos amorosos como plataforma política, escalou meia dúzia deles para formar uma quadrilha e - todos juntos, família acima de tudo - matar o pai da prole.

O Brasil já teve beatos melhores, vozes sofridas da palavra do Messias, e os coitados acabaram perseguidos como bandidos que não eram. Antônio Conselheiro saiu pelo sertão misturando a Bíblia com a dor de ter flagrado a mulher em adultério, e foi morto no acampamento revolucionário de Canudos. O beato Salu, da novela “Roque Santeiro”, gritava para a multidão de Asa Branca que “mais forte são os poderes de Deus”. Como é próprio da espécie, anunciava o fim do mundo.

Os fanáticos de 2020 trocaram a bata branca pelo terno preto, mas continuam ameaçando para breve o fim do mundo, provocado agora pela combinação diabólica da nuvem de gafanhoto do comunismo e a pouca vergonha da maconha. Recriaram o medo e monetizaram a ignorância, na certeza de que o Brasil é campeão mundial do desemprego, mas tem sempre vago um cargo terrivelmente bem assalariado de “Salvador da Pátria”. Exige-se apenas discurso moralista em defesa da família, como fazia a deputada-flor nas sessões plenárias pela manhã, poucas horas depois de passar a noite no pegapracapá do clube de swing.

Eu nem precisava ter nascido há tanto tempo para saber que no Brasil, com a exceção da Irmã Dulce, santo de casa não faz milagre. Rouba, difama, mata, racha. Basta ler os relatórios do Coaf e os autos dos processos contra esses falsos tementes do fogo do inferno. O pastor, que usou as águas do Rio Jordão para lavar a imagem do fã da tortura, também tinha a sua quadrilha – e o jornal de amanhã deve trazer na primeira página algum novo crime do evangelismo municipal, do protestantismo estadual ou do cristianismo federal. Deus foi arrolado como cúmplice, mas é inocente. Dez mil anos atrás, ele me disse - tem horror a essa gente mentirosa e ruim. Fonte: https://blogs.oglobo.globo.com