Frei Bruno Secondin, O. Carm.

             Por muito tempo se considerou São João como um dos mestres no âmbito da Mística graças aos seus textos, às suas introspecções teológicas, à descrição que faz dos elementos distintivos da experiência do divino autêntica, imediata, sublime. E assim ele permanece até hoje, ao menos para aqueles que compreendem a mística como um tema, que se deve desenvolver com argumentação lógica e clareza de passagens e "conteúdos" experienciais. Com efeito, quando os "tratadistas" da espiritualidade entram no capítulo final da mística e dos seus fautores, São João está entre os autores fundamentais, que servem de sustento.

            Podemos até dizer que alguns temas não podem ser explicados sem a direção plena de João da Cruz. Limito-me a dar um elenco daquilo que todos afirmam como importante. A sua linguagem sobre as purificações ativas e passivas dos sentidos e do espírito por meio das "noites", a sua ênfase sobre a função da afetividade no processo de transformação e união com Deus, o caminho da fé mais como experiência radical do que como adesão a idéias e dogmas, a riqueza do seu léxico simbólico e parabólico e a sua capacidade de criar uma "sugestão" inspiradora, a relativização e mesmo desconfiança diante da multiforme fenomenologia corpórea ou mental dos estados místicos, o sentido da transcendência e, portanto, da incapacidade de se exprimir nos confrontos do encontro com Deus.

            Apresentemos agora alguns exemplos para demonstrar a sua possível atualidade no campo da mística e nos problemas que lhe dizem respeito.

            Um exemplo: a imagem de um "Deus mudo", seja no sentido que a linguagem com que Deus se exprime é essencial e total ao mesmo tempo (cfr. a famosa expressão de 2S 22,7), seja no sentido da vida de fé, que deve passar pela prova do "silêncio de Deus", que chega até às fímbrias do ateísmo, da perda de sentido da vida, da tribulação interior sem luz nem esperança. Em um contexto de experiência religiosa contaminada por muitas "mensagens" e "visões", com propostas de experiências místicas, onde a "cruz"    e o "vazio" são como que expulsos a priori, São João recorda que a autenticidade do encontro com Deus é comprovada pelo que é essencial no seu divino comunicar-se, pela ausência de palavras humanas adequadas para transmitir os conteúdos da experiência e pela presença da obscuridade dolorosa e da purificação profunda.

            Exemplo, que ainda é inspirador para os dias de hoje, é o seu "procurar ajuda" nas Escrituras e na Igreja para poder "explicar-se" com palavras: refiro-me ao famoso prólogo da Subida (prólogo nº 2). Não é tanto o cuidado de ortodoxia ou de coerência com a fé católica que está em jogo, mas muito mais uma outra verdade, quer dizer: a palavra bíblica é o lugar de origem, decisivo, no qual o Absoluto se expressa, se fez "Palavra" no tempo. O místico, portanto, não pode estar senão em conformidade com esta linguagem originária, em profunda analogia com ela e por ela intimamente condicionado: e por este caminho será autêntico. E além disto deve estar em comunhão com a grande tradição viva da Palavra, que é a vida da Igreja: assim a sua singularidade se derrama na universalidade, enquanto assume os seus horizontes e oferece a própria contribuição como membro de um organismo vivo.

            Um exemplo ainda: o seu escrever doxologicamente. Escreve não em função de alguma publicação ou para testemunhar as próprias convicções teóricas ou para expor à luz as experiências próprias. Antes escreve como complementar exercício de mistagogia e direção espiritual muito específica, pressionado por exigências de fazer entender melhor aquilo que a linguagem da poesia permite intuir, mas não é capaz de explicar. Temos de recuperar esta convicção, que nos parece às vezes não positiva: João da Cruz é parcial nos seus temas e nos seus tratados, é ocasional, é incompleto. Isto porque decidiu acompanhar de maneira eficaz o desenvolvimento de situações concretas, os estados particulares desta ou daquela alma. O seu escrever é confissão mais do que teoria abstrata e, por isso, a linguagem é muitas vezes entretecida de paradoxos, parábolas, interrupções, oximoros, suspensões.

            A ligação entre poeta e escritor não é vista, antes de tudo, em termos de forma literária, mas de processos experienciais. A anchura y copia (amplitude e abundância) da experiência encontram forma principalmente numa expressão simbólica e poética, e depois, às vezes, numa explicação e numa linguagem discursivo-escolástica. Compreender de veras a São João, ou melhor, transformar-se de leitores em discípulos seus, significa repercorrer em marcha atrás o itinerário genético, isto é, da prosa para a poesia, até o momento da experiência da comunhão com Deus. Trata-se de passar da posição lógica, ascética, moral para a posição estética, simbólico-poética e para a "mística" como experiência do mistério de Deus. Muito perigoso seria reduzir São João da Cruz a um manual de modo de usar; ele faz, ao contrário, solicitações para o face a face com Deus, sem redes nem anteparos, para a vertigem do encontro e para as tribulações da participação da vida divina. Quanto a isto oferece um bom contributo o método citado da leitura dinâmica estrutural.

            Como último exemplo quero acenar ao relacionamento entre São João da Cruz e Santa Teresa: as histórias e historietas todos conhecemos. Gostaria de chamar a atenção para um ponto chave diferente: Teresa de Jesus era da opinião de que muitas dificuldades na vida espiritual provêm da falta de conhecimento doutrinal por parte do diretor e, por isso mesmo, antepunha o diretor sábio ao diretor santo. João da Cruz, pelo contrário, estava convencido de que os acontecimentos lamentáveis nascem da falta de experiência autêntica. Quanto a esta visão dos fatos, cada um provavelmente partia da sua situação pessoal: João tinha feito ótimos estudos e conhecia, portanto, os riscos de uma ciência, que incha; Teresa era quase autodidata e padecia de um estranho fascínio pelos teólogos.

            Um e outra, parece-me, tinham uma palavra de atualidade e de verdade. A devoção sem um mínimo de solidez doutrinal e teológica sofre o risco de estabelecer-se sobre veredas secundárias: e nisto Teresa tinha razão. Mas também a ciência abundante, sem o sustento de um coração cheio de amor e sem uma prática coerente e generosa, corre o risco de não ser atingida pela verdadeira moção transformadora do Espírito. Por isto João da Cruz é abraçado não somente como "teólogo", que doutrina, mas como testemunha de uma verdade: no coração da "doutrina" não pode estar senão o processo de transformação sempre aberto a novos horizontes. E assim a sua função de mestre não é tanto a de oferecer contribuições teológicas bem tematizadas, mas a de demonstrar que a teologia verdadeira é aquela que percorre veredas desconhecidas, que escuta o Deus Mudo, e que não tem senão palavras poéticas, parabólicas e simbólicas para anunciá-Lo, mas não profana a sua comunicação com uma enxurrada de palavras humanas.

             Paradoxalmente a grandeza de São João da Cruz não consiste no desdobrar-se em detalhes, mas no ter sabido esconder o mistério conhecido, no ter reconhecido e testemunhado o risco da palavra que obscurece e profana, o risco da explicação que empobrece e torna esvanecida a realidade íntima. Os seus ensinamentos sobre mística aprendem-se quando não fazemos da sua herança uma espécie de enchirídion de teologia espiritual, mas antes de tudo uma contestação da nossa necessidade de deixar tudo claro, de explicar, de classificar.

*A MÍSTICA NO SÉCULO XX: TEORIAS E EXPERIÊNCIAS : A presença de São João da Cruz