Frei Joseph Chalmers,  O. Carm. Ex- Prior Geral

Vivemos em um mundo belo, mas ao mesmo tempo cheio de muitíssimos problemas. Cada dia lemos notícias terríveis: a pobreza crescente, o mundo que se está destruindo com o consumo dos bens terrenos, a corrupção política, o tráfico de seres humanos, a morte de crianças e o terrorismo. Em muitos outros países a Igreja sofreu por causa dos abusos sexuais praticado por sacerdotes. Isto envergonhou toda a Igreja e os sacerdotes e religiosos sentem-se especialmente envergonhados. Existem problemas, inclusive, em nossa vida comunitária e em nossos apostolados. Talvez a vida comunitária ou a Ordem não são o que havíamos pensado quando ingressamos. Nem sempre respondem a nossas esperanças. Pode ser que pensemos que a Igreja vá em uma direção equivocada. Não desejo abater os ânimos. Quero sim fundamentar o que desejo falar hoje: a esperança profunda que vem de nossa espiritualidade. Somos convidados ao Reino de Deus, porém, para entrar é necessário que nos convertamos.

Nós os carmelitas, como todos os cristãos, somos chamados a viver no obséquio de Jesus Cristo. Os primeiros carmelitas foram viver na terra do Senhor, donde Jesus viveu, morreu e ressuscitou. Eles tinham a consciência que seguiam as pegadas de Cristo crucificado. Sim, ele ressuscitou, mas primeiro foi crucificado. Por isso a morte e as trevas tem uma papel importante na cristã. Não têm a última palavra, porém existem.

Como sabemos, o coração do carisma carmelita é a contemplação, que é um processo de purificação e transformação através do qual crescemos na relação pessoal com Deus em Jesus Cristo a fim de que vejamos com os olhos de Deus e amemos com o coração de Deus. Somos convidados a uma viagem que nos transformará e nos levará ao mistério de Deus. Esta é o fundamento da nossa esperança, apesar de tudo o que acontece ao nosso redor.

 O tema do último Capítulo Geral era “A viagem continua”. O tema da viagem é muito importante em nossa espiritualidade. A Ratio utiliza esta palavra para descrever o movimento de transformação. Quando sentimos que são muitos os problemas, é bom ir ao coração de nossa vocação, do qual temos uma formosa descrição nas Constituições e na Ratio.

A Ratio fala de uma viagem, de um processo de formação, que não acaba com a Ordenação, mas que continua até nossa última transformação. Esta viagem da vida humana transcorre através de experiências boas e más. Muitas vezes estamos metidos numa fossa e necessitamos que alguém nos ajude a sair e continuar nosso viaje. É difícil, às vezes, aceitar que necessitamos ajuda. Há quem negue ter um problema e bote a culpa em todos pelo estado em que se encontra. Não quer afrontar seus problemas e então nega o que está claro para os demais. Estas pessoas podem criar muitas dificuldades aos outros membros da comunidade. Freqüentemente não queremos enfrentar o problema e aceitamos uma vida que não funciona e igualmente uma comunidade que não funciona. A Igreja em nossos dias está sofrendo por problemas que não se resolveram no passado.

Pode parecer, às vezes, que no há uma direção, mas que tudo é um destino cego. Muita gente vive assim na prática, mesmo quando professam algum tipo de religião. Segundo a fé cristã, há um movimento, contudo não estamos girando às cegas e sem por que. É necessária a fé para a viagem da transformação. A fé não é somente a aceitação intelectual de uma verdade revelada; é uma eleição vital feita a cada dia e, muitas vezes, contra as aparências que vão contra a fé. Para continuar a viagem até o final, é necessário crer que Deus está próximo de nós, está em nós, apesar do que sintamos e vejamos. Segundo o famoso exemplo dado por Santa Teresa de Ávila, Deus vive no centro do nosso ser e a viagem da fé se faz da periferia ao centro. Podemos sentir-nos afortunados por ter São João da Cruz e Santa Teresa como membros da nossa família; eles se formaram na tradição carmelita, da qual tomaram os elementos tradicionais e os reelaboraram de uma maneira profunda. Santa Teresa descreve o interior do ser humano como um formoso castelo com moradas fascinantes. A morada mais bela se encontra no centro, onde vive o Rei, Deus mesmo. Fora do castelo é perigoso estar, pois há muitas emboscadas. Muitas pessoas vivem fora do castelo e não tem consciência do seu estado lastimável. A porta do castelo é a oração, quer dizer, a comunicação com Deus. Muitas vezes a oração não é uma comunicação com Deus. Pode que seja uma conversa consigo mesmos ou sonhar acordado. Devemos, então, buscar um método de oração que nos abra verdadeiramente à comunicação com Deus. A Lectio Divina nos leva ao contato com a Palavra de Deus e nos abre à presença divina e a sua ajuda é transformadora. A Lectio Divina fortaleceu a vida carmelita durante muito tempo e foi redescoberta em nossos dias.

Quando se entra no castelo, há muitas moradas por ver o explorar. Muitas vezes temos que nelas entrar e a elas regressar. Estas moradas são importantes, porém não são o final da viagem. Sem o conhecimento próprio, não avançaremos muito. Santa Teresa diz que a humildade é muito importante e, segundo ela, a humildade significa conhecer-se a si mesmo e aceitar esta verdade. Como é difícil conhecer e aceitar a verdade acerca de si mesmo! Hoje existe todo tipo de ajudas de tipo terapêutico no campo da psicologia; espero que possamos utilizar estas ajudas como uma base para o conhecimento de nós mesmos para crescer e entrar em nosso interior. Ao crescer na relação com Deus, crescemos também na relação com os demais. É uma ilusão pensar que temos uma ótima relação com Deus quando tratamos os demais com pouco respeito.

A maioria chega às terceiras moradas bem rápido, mas Santa Teresa põe o acento num problema muito sério. Muitos chegam a esta etapa, contudo não continuam a viagem. O motivo é que se sentem satisfeitos e não vêem necessidade de um esforço ulterior. O problema é que este estágio é bom. Os que aqui chegam são bons, mas sua vida religiosa guia-se por um sentido comum e jamais serão tentados a ir mais adiante. Entretanto, a viagem é longa e é preciso seguir caminhando.

Para continuar a viagem necessitamos um pequeno impulso de vez em quando. Recordam-se da cena em que Elias sentou-se embaixo de uma árvore e desejou a morte. Deus tinha um plano concreto para ele e este plano poderia ser obstaculizado se Elias no continuasse sua viagem. Por isso Deus lhe envia um anjo. Este mensageiro divino anima a Elias dando-lhe de beber e comer. O anjo repetirá este processo antes que Elias se levante e retome sua viagem. Não temos uma resposta fácil para os problemas do mundo. É um insulto e uma blasfêmia dizer a uma pessoa que está com um problema sério ou com uma enfermidade, qual é a vontade de Deus. Não sabemos porque as coisas desagradáveis acontecem com gente boa, ou simplesmente, porque o que acontece é já um mistério. Quando Jesus foi crucificado, experimentou a ausência de Deus e, em nossos dias, esta parece ser a experiência comum. Deus parece que está ausente de nosso mundo moderno. Muitas pessoas, inclusive crentes, parecem ateus na prática pois vivem como se Deus não existisse, mesmo quando vão à missa aos domingos.

Onde está Deus presente no meio dos nossos problemas? Nossa fé nos assegura que Deus não está ausente da nossa vida. Isto seria o inferno. Contudo, devemos aprender a discernir a presença de Deus em meio a sua aparente ausência. Temos que aprender uma nova linguagem, a linguagem de Deus. Nosso irmão São João da Cruz nos diz:

“Uma palavra pronunciou o Pai, que foi seu Filho, e esta fala sempre no eterno silêncio, e em silêncio deve ser escuta pela alma.” (Ditos de luz e amor, 104)

Temos que cultivar um silêncio profundo dentro de nós a fim de que possamos escutar o que Deus quer nos dizer. Temos que escutar Deus na oração, porém também nos acontecimentos da vida diária. Temos tanto ruído dentro de nós que, às vezes, não podemos escutar ou discernir qualquer outra coisa. Este silêncio deveria ser co-natural a nós carmelitas ou ao menos o desejo do silêncio. Isto não é uma ascética, nem tampouco o silêncio exterior. É um silêncio interior para discernir a presença de Deus em meio às situações mais inverossímeis, a fim de que possamos prosseguir a nossa viagem com esperança.

Necessitamos reconhecer os ruídos que existem dentro de nós: comentários sobre os outros, sobre os acontecimentos e sobre nós mesmos. Quando estamos conscientes deste nosso ruído interior, podemos começar a purificar-los para que não infeccione tudo o que fazemos, pensamos ou dizemos. Se prosseguirmos esta viagem, afrontaremos nossos preconceitos, nossos medos irracionais e nossas presunções. Esta experiência não é para enrijecer-nos, mas para ajudar-nos a ser livres.

Necessitamos cultivar o silêncio interior para que possamos estar conscientes de que Deus nos está falando através de um humilde mensageiro. Se não há silêncio dentro de nós, sempre vamos atrás dos nossos pensamentos e jamais entendemos o que ocorre em torno a nós. É interessante fazer uma experiência de silêncio com algum grupo. Depois de alguns momentos, alguém começa a tossir, outro se move na cadeira, outro rasga um papel. Muitos de nós não nos sentimos cômodos quando há silêncio exterior. Nos despertamos pela manhã com o som do rádio. Trabalhamos numa atmosfera de ruído, não temos tempo para pensar. Temos uma fita cassete interior ou um CD interno que nos faz um comentário de tudo o que ocorre durante o dia. Os comentários deste disco estão baseados sobre a nossa perspectiva particular, que naturalmente está a nosso favor. Por instinto nos defendemos quando nos sentimos atacados ou buscamos a estima ou aceitação dos outros. Habitualmente aceitamos isto, sem nos dar conta do que ocorre dentro de nós. É um ruído constante que nos impede de escutar qualquer outra voz. A viagem da fé nos conduz ao pleno dia e também a vales escuros. Deus utiliza todos os acontecimentos da vida, bons ou maus, como instrumentos para nossa purificação, que é essencial para que cheguemos a ser aquilo para quê Deus nos criou. Temos que fazer este esforço para distinguir a mão de Deus; este discernimento é muito fácil se calamos a barafunda interior e ouvimos a voz de Deus que nos fala através da brisa suave ou, como dizem alguns exegetas, através do som de um silêncio total.