AUTOR: FELIPE RIBOT († 1391)

Autor do artigo: Lucas M. di Girolamo, OSM, Revista CARMELUS, 52, 1, 2005)

INTRODUÇÃO

            Texto dos inícios da Ordem do Carmo. Conjunto singular de documentos espirituais e conteúdos entre os quais a devoção e a identidade mariana do Carmelo. Parte de uma coleção de livros escritos e editados pelo provincial catalão Felipe Ribot († 1391). Dois elementos de destaque: (a) a importância de Elias, (b) a particular devoção à Virgem Maria. A mensagem mariana numa sucessão de inúmeras imagens e denominações bíblicas para sublinhar a ligação dos carmelitas com a mãe de Deus.

  1. A experiência do Carmelo

            A dimensão mariana no panorama das origens da Ordem Carmelita. Contexto mais amplo é os das primeiras Cruzadas. Eremitas latinos se fazem notícia no monte Carmelo. Procura do Reino e projeto de vocação em vida de “santa penitência, com a oração centrada na Bíblia, na Eucaristia, às vezes, e na mortificação” (E. Boaga, “Como Pedras Vivas”). Ligação com o lugar e a afirmação da devoção mariana com origem na literatura de viagens e peregrinações, Bíblia e Vidas de Santos, interesse por lugares santos dedicados a Maria + a percepção da unidade de fundo existente entre a Virgem Santa e seu Filho Jesus. — Fator 1: o contexto das Cruzadas e sua devoção mariana (lugar; oração; modelo). Fator 2: o uso constante da Sagrada Escritura, definindo a relação “Mariaß>Carmeloß>Elias”. Textos da caminhada carmelita dos primórdios: 1Rs 18, 42-45 e Ct 7, 6 (em perspectiva mariana). Apoio mais antigo: Honório de Autun (entre 1133 e 1156) e Felipe de Harveng. — Base ao título mariano: capela dedicada à Virgem; a denominação encontrada 1245 e 1247, de Inocêncio IV. — Base do caráter eremítico: a “Fórmula de Vida”, as bulas papais, uma acentuação forte e digna de respeito dos inícios do caráter eremítico e da identidade da Ordem consolidfada já no século XIII. — Outro aspecto básico para o caráter original: a assiduidade em relação à Sagrada Escritura de seus membros (atitude de escuta; “modus vivendi”; uso da Escritura; papel de Elias). — Importância de três aspectos interligados pela frase corrente “A Escritura foi dada para a salvação”: a percepção da Escritura como fato espiritual (motivo); a finalidade de edificar as pessoas em vista da salvação (finalidade); o conjunto de citações e a afirmação da intenção subjacente (método). Exemplos: Livro II, capítulo 2 e Livro III, capítulo 1 (Elias, profetas, profetismo); Livro III, capítulo 1 filhos dos profetas, ótica de futuro e progresso histórico, vicissitudes históricas, itinerância); Livro V, capítulo 1 (característica de universalismo; celebração entusiasta e ao mesmo tempo “pacata” pelo crescimento da família; fenômeno da “agregação”). —       A partir dos elementos presentes no “De Institutione” se pode delinear os valores que, especialmente após a aprovação de Inocêncio IV (mendicantes, 1247); 1) sua matriz eremítico-eliana, não como afastamento do mundo, mas como ligação com a realidade à volta; 2) a itinerância, elemento precioso para a tarefa da pregação + figura da caminhada existencial do homem em direção ao Reino; 3) as figuras de Elias e Maria (cf. Lc 2, 39s), unidas por Cristo (testemunho de carmelitas: John Baconthorp, G. de Cheminot († 1342-50), G. de Coventry († em mais ou menos 1360), G. de Hildesheim († 1375).

 A Virgem Maria no “De Institutione”

            Concentrada essencialmente no Livro VI (privilégios da Virgem Mãe + relação Maria<-->membros da Ordem.

1) Premissas de método

            Há chaves de interpretação do tempo e da história. Em síntese, pode-se dizer que são três: 1) o fato da Revelação como critério interpretativo de fundo e tendo por centro e vértice a Encarnação de Jesus, A saber: (a) Cristo como vértice e centro da Revelação, legitimando o uso livre da Bíblia; (b) repetição dos textos (leit-motiv) e familiaridade (como uma co-autoria). — 2) A vivência e interpretação da história através de um “quid” de natureza meta-histórica por ele experimentado (experiências espirituais colocadas por escrito). — 3) A dimensão cristológica que inclui e sustenta a doutrina mariana (fala-se da Virgem Maria, mas o panop de fundo é Cristo-Fonte.

 2) Elementos marianos do livro.

            Pelo menos quatro elementos (conceitos: 1) a nuvenzinha, cf. 1Rs 18, 42-45, e seu sentido (caps. 1-4); 2) o testemunho de virgindade da Ordem (caps. 3.5-6); 3) as figuras exponenciais de Elias e Maria (cap. 5); 4) o título da Ordem (cap. 6-8). Sua unidade e enlaçamento expõem a identidade da família carmelita, portadora na Igreja da sábia síntese entre a tradição do AT e a novidade de Jesus bebida na experiência mariana. Esta se tornou um estilo de vida em Deus (“vita mariefome”, Miguel de S, Agostinho, † 1684). 

2.1. A nuvenzinha e seu significado.

            1 Rs 18, 42-45. Texto carmelita mais característico: a nuvem, a forma de mão de homem, do mar para o céu. A identificação “nuvem ß> Maria” (cf tbm Is 19, 1 + 45, 8) aparece no Oriente e no Ocidente nos séculos IV e V. — Testemunho precioso, porque se aproxima bastante do que se fala longamente no “De Institutione”: Maria é a criatura imaculada e imune do pecado. Fala ainda da virgindade como elemento importante na formação carmelita. — Particular importância tem a locução “Mare amaro”, de base bíblica: “mare” = realidade de forças desconhecidas e negativas. semelhante interpretação: Maria = gota de mar ou mar amargo. Há em Maria esplêndido equilíbrio entre a sua eleição por Deus, que lhe deu privilegiados dotes, e a pertença à humanidade pecadora (“Mare amaro”). — A tradição espiritual da Ordem viu nessa figuração da Mãe de Deus sua imaculada conceição, verdade de fé diretamente dependente da Encarnação. Viu, também, a figuração da Assunção (cf Miguel Aiguani, autor carmelita, † 1400).      — Primeira conclusão: a presença mútua de dois fatores (pertença à nossa humanidade + graça especial de Deus) na única imagem da nuvenzinha. Imagem profunda que reafirma a pureza de Maria e abre a reflexão sobre o testemunho e a vocação dos carmelitas.

 2.2. O testemunho da virgindade da Ordem.

            Está no livro VI, caps. 3. 5-6. A dura disciplina dos monges para imitar Elias. Lembrança da nuvenzinha. Etimologia estranha da palavra “Carmelo” (“ciência da circuncisão” ß-> “castração mental”; expressão violenta para duas coisas: a adesão incondicional a Deus + o Carmelo como garantia.    

2.3. As figuras de Elias e Maria

            Livro VI, cap. 5: centralização sobre esses dois caracteres da Ordem. Moldura disso: a relação ”Elias ß> Maria”, nó teológico importantíssimo e fator que acompanha a caminhada carmelita: a imitação recíproca. Ribot garimpa idéias em textos bem anteriores ao seu. Fator de exemplaridade e internalização de ambos como patrimônio carmelita. “Conditio sine qua non” para a relação de fraternidade entre Maria e os frades. A passagem do AT para o NT não é vista como ruptura, mas indicação de fraternidade com a Virgem, o que torna mais válida sua imitação, pois esta é antecipada e fundamentada na Encarnação (cf Hb 1, 1-3). De Elias (cf presença em Mt 17, 3 e paralelos) se vai a Cristo, cuja encarnação engrendece Maria e a Igreja.

            A significação da passagem do AT para o NT, como se lê no “De Institutione” se pode ver no gráfico abaixo:

2.4. O título da Ordem

            A questão do título pode ser vista num plano de evolução histórica, como afirma E. Boaga (“Como Pedras Vivas”). Recordam-se aqui duas datas iniciais (séc. XIII): 1246-1247, carta de Inocêncio IV ao bispo de Londres, onde fala de “fratres beatae Mariae Virginis de Monte Carmelo” (irmãos da bem-aventurada Maria Virgem do monte Carmelo”); e 1252, data do início do uso oficial do título, depois de aprovado por Inocêncio IV: “heremitae fratres ordinis sanctae Mariae virginis de monte Carmeli” (eremitas irmãos da ordem da santa Maria virgem do Monte Carmelo). Não há como ter clareza de se o título veio de fora ou emergiu de dentro. Na primeira hipótese, é da autoria do povo que queria distinguir o grupo de outros residentes no Monte (Santa Margarida); na segunda, há testemunhos implícitos de escritos do século XIV e a comparação entre datas oficiais da bula de 1252 e as datas de quando o povo chamava os carmelitas. A questão, porém, não está resolvida.

            Nosso livro propõe três elementos relacionados com o título: 1) o conceito de imitação (Elias); 2) a troca do nome favorito na passagem do Antigo para o Novo Testamento; 3) a fixação dos dois títulos finais. 

            Dito isto, fica proposto novamente o conceito de imitação pelos monges que seguem os passos de Elias, “profetas”, por exemplo, título vinculado ao costume deles de louvar e salmodiar com todo o ser. Depois, ao serem chamados de “filhos dos profetas”, os discípulos, à imitação de Elias, residente do monte Carmelo — passaram a também residir ali, de onde o título “carmelitas”. Tais aspectos são passados pelo texto no intuito de reafirmar e confirmar a memória das origens.     No cap. 7, uma outra lista de títulos a partir da novidade evangélica, por exemplo o de Nota-se já no título “religiosos”, a saber, gente ligada a Deus, sobretudo pelo culto.              

            Preparando a conclusão, deixamos para trás dois aspectos talvez irrelevantes: a lista dos títulos antigos (cap. 7); a lista dos títulos modernos (cap. 8), para concentrar a argumentação no último capítulo, onde estão dois únicos títulos de uso corrente: “carmelitas” e “irmãozinhos da Bem-aventurada Virgem Maria”. Eles representam tanto a síntese das duas épocas em que se “snoda” (?) o mistério/desígnio da salvação centralizado em Jesus, quanto o próprio núcleo do patronato exercido por Maria sobre a Ordem, resultante da dimensão espacial (Senhora do Lugar), da dimensão teológica (Maria, Mãe de Deus e figura da Igreja) e da dimensão espiritual (Maria com quem se liga a Ordem por vincula de fraternidade).

CONCLUSÃO

            “Maria, que entrou intimamente na história da salvação, reúne em si de alguma forma e reverbera os maiores dados da fé” (Vaticano II, LG 65, cap. VIII). Em que pese a distância cronológica entre a LG e o “De Institutione”, essa frase representa um ponto de partida e um ponto de chegada. De partida, para as reflexões seguintes; de chegada, enquanto exprime um longo itinerário de estudo sobre a devoção à Virgem. Isto significa que a Mãe de Deus está no centro de uma pluralidade de aspectos por ela mesma conservados unidos por força de sua singular comunhão com Deus e aprofundados de tempos em tempos.

            O “De Institutione” nasce sem dúvida da experiência de vida e do fervor inicial em torno de um projeto de exclusiva dedicação às coisas do Senhor (cf 1Cor 7, 35). Isto implica uma renovação de vida assumida na força do exemplo da Mãe de Deus — a Senhora Nova — de uma novidade que lhe é inerente, sem dissociação com Jesus e com repercussão eclesial. Partindo dessa premissa, podem-se anotar os aspectos relevantes do livro resumidos em linhas fundamentais.

DESEJO DE DEUS. — Determina a vida contemplativa inicial. Os primeiros carmelitas vivem em grupo no Carmelo, lugar biblicamente associado à manifestação divina; lugar de solidão, que logo se enche da sonora presença dos primeiros consagrados à pregação e à salmodia. Esse desejo de Deus não é imobilismo nem existência estática; logo a eles se agregam outros ao modo de filiação que garante sua continuidade.

CONSCIÊNCIA DO LIMITE. — Aspecto com certa dramaticidade. Na visão da nuvenzinha, a proposta carmelita de vida em virgindade a exemplo de Elias e Maria. Por isso temos dois planos significativos, mesmo antropologicamente: o inferior (a humanidade pecadora de são parte os carmelitas); o superior (toda a singularidade da Virgem Maria). É notável, contudo, como o “De Institutione” sublinha fortemente o caráter agônico da vida espiritual!

CARÁTER MARIANO: HÁBITO E CULTO. — A presença de Maria determina o itinerário desta família, que a ela se dedica pelo culto e pelo sinal externo do hábito mudado para a cor branca emblemática da pureza. 

            Por fim, o “De Institutione” traz como característica um forte e realista ascetismo; sua leitura atenta revela uma impostação fortemente cristológica, com base em interpretações da época, que levam em consideração a escatologia cristã, os eventos que consumam a Páscoa de Jesus e se encontram na glorificação de Maria, antecipação da glória da Igreja e do Homem.

            O que liga concretamente essas chaves de leitura é o empenho pela santidade, que é a vocação de toda pessoa consagrada, vocação  originada da plenitude a que Deus faz chegar cada homem/mulher; santidade que é a meta de caminhada para a qual, sustentado pela graça, cada qual se orienta por uma vida de fidelidade.

            Tal fidelidade é comum a Elias e Maria, ambos distinguidos pelo caráter profético e, como tais, capazes de falar de Deus. É a missão do profeta: não o anúncio de um futuro róseo, mas recordar e fazer recordar a verdade que são a caminho para o céu. Neste sentido, o grande defensor da fé do AT e a Mãe do Senhor não são para os carmelitas parâmetros jurássicos fossilizados, mas passíveis de serem vividos em substância e na prática em todos os contextos em que a Ordem estiver operacionalizando a parte de Igreja chamada a difundir a única mensagem de Salvação. No percurso desse caminho, é possível testemunhar com credibilidade o dom a nós confiado e que somos chamados a tornar conhecido como dádiva universal de redenção!

*Tradução de Frei Martinho Cortez para uso no Noviciado Carmelita/2008