Frei Carlos Mesters, O. Carm.

O silêncio, caminho para a prática da justiça: Saber escutar o grito dos silenciados

O Texto da Regra

O apóstolo recomenda o silêncio, quando manda que é nele que se deve trabalhar. E como afirma o profeta: a justiça é cultivada pelo silêncio. E ainda: no silêncio e na esperança estará a força de vocês.

            Por isso, determinamos que, depois da recitação das completas, guardem o silêncio até depois da Hora Primeira do dia seguinte. Fora desse tempo, embora a observância do silêncio não seja tão rigorosa, com tanto mais cuidado abstenham-se do muito falar, porque, conforme está escrito e não menos ensina a experiência: No muito falar não faltará o pecado; e: Quem fala sem refletir sentirá um mal-estar; e ainda: Quem fala em demasia prejudica a sua alma; e o Senhor no Evangelho: De toda palavra inútil que os homens disserem, dela terão que prestar conta no dia do juízo.

            Portanto, cada um faça uma balança para as suas palavras e rédeas curtas para a sua boca, para que, de repente, não tropece e caia por causa da sua língua, numa queda sem cura que conduz à morte. Que, como diz o profeta, cada um vigie sua conduta para não pecar com a língua, e se empenhe, com diligência e prudência, em observar o silêncio pelo qual se cultiva a justiça.

1-Um pouco de história: sobre o silêncio no Monte Carmelo e na Regra

Na solidão do Monte Carmelo, onde viviam os primeiros carmelitas, reinava um grande silêncio. Não havia barulho, a não ser os ruídos da própria natureza que convidam ao silêncio. Mesmo assim, a Regra recomenda com muita insistência o silêncio. Numa cidade barulhenta tem sentido insistir que se faça silêncio. Mas pedir que se faça silêncio naquela serra imensa do Carmelo, cheia de solidão, qual o sentido? Parece o mesmo que carregar água para o mar! Qual o silêncio que a Regra pede daqueles primeiros carmelitas do Monte Carmelo e, através deles, de todos nós da Família Carmelitana?

Comparando o texto escrito por Alberto em 1207 com o texto aprovado pelo Papa Inocêncio IV em 1247, a gente nota uma diferença. Alberto dizia que se devia observar um silêncio estrito desde a oração das Vésperas no fim da tarde até à Hora Terceira do dia seguinte. O texto definitivo, aprovado pelo Papa, encurtou o tempo do silêncio estrito. Agora é desde a oração do Completório à noite até à Hora Primeira do dia seguinte. O motivo deste abrandamento do silêncio estrito era poder servir melhor ao povo na atividade pastoral. Mas continua a pergunta: qual o silêncio que a Regra pede e recomenda?

Há muitos tipos de silêncio: o silêncio de uma sala de estudo ou de uma biblioteca; o silêncio que se pede num hospital; o silêncio da noite ou da madrugada; o silêncio da natureza, o silêncio da morte; o silêncio que precede à tempesta­de; o silêncio do medo; o silêncio do censurado e do povo silenciado e amordaçado; o silêncio do aluno que não sabe a resposta, o silêncio de .... Qual o silêncio que a Regra pede e recomenda?

2-O ponto de partida: o controle da língua que conduz ao silêncio profético

Como nos números anteriores sobre as armas espirituais e o trabalho (Rc 18 a 20), assim também aqui no número sobre o silêncio (Rc 21), a Regra sintetiza e canaliza as águas do rio da tradição monástica e eremítica e a faz passar pelo jardim do Carmelo situado nas perife­rias das cidades no meio dos pobres, para que o irrigue e produza frutos de justiça, de fraternidade e de santidade a serviço da Igreja e do povo.

Este número 21 da Regra sobre o silêncio tem quatro partes: 1) Descreve o valor do silêncio; 2) Organiza o silêncio; 3) Recomenda a prática do silêncio; 4) Aponta o objetivo do silêncio.

3-O Valor do silêncio

Na primeira parte, usando frases da Bíblia, a Regra lembra a recomendação do apóstolo Paulo a respeito do trabalho em silêncio (Rc 20). Em seguida, para des­crever o valor do silêncio, ela cita por inteiro duas frases do profeta Isaías: "A justiça é cultivada pelo silêncio", e “É no silêncio e na esperança, que se encontrará a força de vocês. Assim se sugere que o silêncio recomendado pela Regra tem a sua origem nos profetas. É um silêncio profético! Trata-se de um silêncio que é muito mais do que só ausência de barulho e de falatório. Conforme as duas fraes do profeta Isaías, o silêncio tem a ver com a prática da justiça e com a esperança e a força (resistência). Para nós, carmelitas, o silêncio profético evoca o profeta Elias.

Este silêncio profético tem dois aspectos, expressos nas duas frases de Isaías. A primeira frase diz que o cultivo do silêncio gera justiça: "A justiça é cultivada pelo silêncio". Isaías compara a prática do silêncio com o trabalho do agricultor que cultiva sua roça para ter boa colheita. A primeira frase indica o esforço ativo nosso que visa atingir um determinado resultado. A segunda frase do profeta sugere o contrário. Em vez de esforço ativo em busca de um resultado, aqui a prática do silêncio é vista como a atitude de espera resistente de algo que deve acontecer, mas que não depende do nosso esforço. Depende de Deus.

4-A Organização do silêncio ao longo do dia e da noite

Na segunda parte do número 21, a Regra descreve a organização do silêncio. Se o silêncio é um valor tão importante, ele deve ter a sua expressão na vida diária no Carmelo, adaptada ao ritmo diferente do dia e da noite. A noite, ela por si mesma, é silenciosa. Produz uma certa passividade. O silêncio da noite acalma as pessoas e as faz silenciar. Acontece, independente de nós. O dia é mais barulhento. Em vez de silêncio, produz distração. Agita as pessoas. Por isso, a Regra pede um tipo de silêncio mais estrito para a noite e um silêncio menos estrito para durante o dia. Assim, insistindo para que o silêncio seja organizado conforme o ritmo diferente do dia e da noite, a Regra, por assim dizer, cria canais concretos através dos quais o silêncio possa atingir as pessoas para gerar nelas a justiça, a esperança e a resistência (força) de que fala o profeta Isaías. Através da observância do ritmo do silêncio de dia e de noite, a pessoa vai assimilando dentro de si os valores do silêncio profético.

5-A recomendação da prática do silêncio

Na terceira parte a Regra descreve como  a pessoa deve fazer para cultivar o silêncio que gera a justiça. Este cultivo consiste sobretudo no controle da língua. Citando frases da Bíblia, Alberto aponta os perigos do muito falatório. Ele diz: No muito falar não faltará o pecado; e quem fala sem refletir sentirá um mal-estar, e ainda quem fala muito prejudica sua alma. E o Senhor no Evangelho: de toda palavra inútil que as pessoas disserem, dela terão que prestar conta no dia do juízo.

6-O objetivo do silêncio

No fim, citando novamente frases da Bíblia, a Regra conclui descrevendo o objetivo do silêncio. Ela diz:  Portanto, cada um faça uma balança para as suas palavras e rédeas curtas para a sua boca, para que, de repente, não tropece e caia por causa da sua língua, numa queda sem cura que conduz à morte. Que, com o profeta, cada um vigie sua conduta para não pecar com a língua, e se empenhe, com diligência e prudência, em observar o silêncio pelo qual se cultiva a justiça. Com outras palavras, a ausência de silêncio conduz ao pecado e à morte. A prática do silêncio conduz à justiça e à vida. Aqui, no fim do número sobre o silêncio, aparece de novo a insistência na prática do silêncio como caminho para a justiça. É o objetivo do silêncio profético!

Hoje em dia, o fluxo de palavras, de imagens e de falatório que nos envolvem é tanto, que impede as pessoas de perceberem o que está acontecendo de fato. Envolve-nos de tal maneira, que acabamos achando normal aquilo que, na realidade, é uma situação de pecado e de morte. Por exemplo, anos atrás, o povo se revoltava diante de assassinatos e diante da violência. Hoje em dia, a violência tornou-se uma coisa tão freqüente e tão presente, que já nos acostumamos. A miséria crescente do povo, a injustiça impune, o sofrimento dos que nunca cometeram algum mal, o abandono, o desemprego, a exclusão, a doença, a solidão, o desamor...! Vivemos numa situação de morte, e já não nos damos conta. Além disso, muitas vezes, o consumismo mata qualquer esforço de consciência mais crítica

7-O objetivo do silêncio profético: enfrentar a morte e conduzir à vida

O primeiro passo do silêncio profético

O primeiro passo do silêncio profético está expresso na primeira citação de Isaías que diz: A justiça é cultivada pelo silêncio. Este cultivo consiste num trabalho ativo nosso que faz silenciar tudo dentro de nós, para que a realidade possa aparecer do jeito que ela é em si mesma e não como aparece desfigurada através do muito falatório, do barulho da moda, do diz-que-diz, ou através dos meios de comunicação. Este trabalho ativo da prática do silêncio produz, aos poucos, o desmantelo das falsas idéias, da ideologia dominante ou dos pre­conceitos que tínhamos na cabeça. Faz nascer a visão justa das coisas. Gera em nós a justiça. "A justiça é cultivada pelo silêncio".

Na hora em que se desmantela dentro da nossa cabeça o arcabouço ideológico que nos dava uma visão falsa e artificial da realidade, nessa hora é como se levássemos uma pancada forte. Como que de repente, despertamos do sono e somos confrontados com a situação de morte sem saída em que estamos vivendo e que grita por mudança e conversão. Nesse momento, tudo silencia dentro da gente. O falatório acabou, emudecemos. Perdemos os argumentos que nos sustentavam. É o momento da crise. Este momento do confronto com a situação de morte que faz silenciar, é o primeiro passo do silêncio profético, de que fala a Regra. É fruto do esforço ativo nosso de fazer silenciar o muito falatório da propaganda, da ingenuidade sem consciência crítica.

O silêncio profético coloca o dedo na ferida escondida. Ele denuncia os caminhos sem saída em que estávamos caminhando e dos quais achávamos que fossem caminhos de vida, quando, na realidade, nos conduziam para a morte. O profeta aponta a morte, não porque gosta da morte, mas sim para que a vida possa manifestar-se. Agindo assim, ele dá pancada, faz silenciar. Faz silêncio para que possamos escutar e experimentar a morte e, passando pela morte, reencontrar a vida. É a cami­nhada da Noite Escura, de que fala São João da Cruz. É uma exigência da vida que sejam apontados os falsos e ilusórios caminhos da morte, para que possam provocar mudança e conversão, tanto na vida pessoal como na convivência social, e, assim, gerar justiça.

O segundo passo do silêncio profético

O segundo passo do silêncio profético está expresso na segunda citação do profeta Isaías: No silêncio e na esperança está a força de vocês. O silêncio produzido em nós pelo confronto com a situação de morte, apesar de doloroso, é fonte de esperança e produz a força da resistência. Dá força para a gente agüentar a situação de morte, porque acreditamos que da morte do trigo caído na terra vai brotar vida nova (cf. Jo 12,24). Faz cantar. Como diz o poeta: Faz escuro mas eu canto. Canta a Noite Escura do povo, porque dentro dela já se articula a madrugada da ressurreição.

Este segundo passo, fruto da ação de Deus, aparece em muitos lugares na Bíblia e de várias maneiras. Trata-se da experiência mística. Salmo 37,7 diz: Descansa em Javé e nele espera. Literalmente se diz: Esvazia-te diante de Javé e agüenta firme. Ele espera e aguenta firme, porque sabe que vai nascer vida nova, apesar das muitas dores. Diz o salmo 62: "Só em Deus a minha alma descansa, porque dele vem a minha salvaçao (Sl 62,2.6). Lamentação 3,26 diz: É bom esperar em silêncio a salvação de Javé. É a experiência da certeza que vem de Deus. A pessoa não sai de frente de Deus, porque sabe que vai ser atendido. A mesma experiência transparece em outro salmo: "Como os olhos dos escravos fixos nas mãos do seu senhor, e como os olhos da escrava fixos nas mãos de sua senhora, assim estão nossos olhos fixos em Javé nosso Deus, até que ele se compadeça de nós" (Sl 123,2).

Este mesmo silêncio foi acontecendo na vida do profeta Elias na caminhada para o Monte Horeb (1Rs 19). Disto falaremos no Capítulo 18. O mesmo silêncio aconteceu também na vida de Maria e na vida dos Santos e Santas Carmelitas. Sobre isto meditaremos no

Capítulo 19.

Resumindo. O silêncio profético recomendado pela Regra tem dois aspectos, expressos pelas duas frases de Isaías. O primeiro aspecto é fruto do esforço nosso. Exige disciplina e controle, estudo e reflexão, para que a gente possa perceber os mecanismos da opres­são e da ideologia, dos preconceitos e das propagandas. É fruto da partilha, da troca de expe­riências, do trabalho comunitário. O segundo aspecto do silêncio profético é fruto da ação do Espírito de Deus em nós. Desobstruído o acesso à fonte pelo esforço ativo nosso, a água brota de dentro de nós e inunda o nosso ser.