Dom Milton Kenan Júnior, bispo da Diocese de Barretos, São Paulo.

           Ao iniciar o nosso Retiro, na companhia e sob a guia de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, convido-as a colocar-nos inteiramente sob a ação do Amor, que nestes dias, quer tocar-nos tão profundamente como tocou o coração de Teresa de Lisieux. Talvez possa parecer presunção nossa aspirar algo tão elevado, e aparentemente tão distante, mas não: a própria Teresa diz que Deus seria incapaz de inspirar-nos desejos que não pudessem realizar-se.

            Para muitos pode parecer difícil que Deus se sirva de uma jovem como Teresa do Menino Jesus para falar ao nosso tempo. Entretanto, a realidade é bem essa: “o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.” (1Cor 1,25). Deus quer servir-se de Teresa para falar aos homens e mulheres que vivem a mudança civilizatória (mudança de época), indicando-lhes “um pequeno caminho bem reto, bem curto, uma pequena via toda nova.” (Ms C 2v)

            Hoje, precisaríamos submeter-nos a uma desintoxicação espiritual. Nossos olhares ofuscados pelas luzes de neon das nossas cidades parecem incapazes de vislumbrar a beleza das estrelas que povoam os céus. Nos céus, hoje, brilham constelações de santos e santas, contemporâneos nossos, indicando-nos o caminho a percorrer, apontando-nos a direção; entre eles, a pequena Teresa, que parece ter antecipado os tempos ao chamar a atenção para a beleza do amor.

            Santa Teresa de Lisieux é doutora na “ciência do amor”, como declarou o Beato João Paulo II na Carta Apostólica “Divini Amoris Scientia” (A Ciência do Amor Divino): “Ela fez resplandecer no nosso tempo o fascínio do Evangelho; teve a missão de fazer conhecer e amar a Igreja, Corpo místico de Cristo; ajudou a curar as almas dos rigores e dos temores da doutrina jansenista, inclinada a sublinhar mais a justiça de Deus do que a sua misericórdia divina. Contemplou e adorou na misericórdia de Deus todas as perfeições divinas, porque «até mesmo a justiça de Deus (e talvez mais do que qualquer outra perfeição) me parece revestida de amor» (Ms A 83v). Deste modo, tornou-se um ícone vivo daquele Deus que,segundo a oração da Igreja «mostra o Seu poder sobretudo no “perdão e na misericórdia» (cf. Missal Romano, Oração do XXVI Domingo do Tempo Comum).” (DAS 8)

            Nestas palavras encontramos a razão que nos levou a escolher como tema do nosso retiro: “Na maturidade do amor”. Deixar-se conduzir por Teresa é deixar-se conduzir para a maturidade do amor. Toda a sua existência foi uma caminhada para alcançar a maturidade do amar e ser amado, do deixar-se amar, do viver de amor.

            Vamos percorrer as páginas no ultimo manuscrito, intitulado Manuscrito C. Eu me  atreveria em dizer que estas paginas foram escritas na maturidade da fé e do amor. Teresa consumida pela tuberculose, na escuridão da fé, prevendo que a sua morte se aproxima com rápidos passos, sabendo que estas paginas servirão para uma futura publicação sobre a sua vida, escreve por obediência, tendo que ludibriar suas irmãs que vendo-a sob as castanheiras do quintal, com aquela caderneta nas mãos, não deixam de aproximar-se dela para distrai-la, acabando por roubar-lhe o tempo precioso que dispõe para descrever sua vida no Carmelo.

            Trata-se de um texto que revela a maturidade daquela que o escreve. Ela lança constantemente um olhar em profundidade sobre a vida. Consciente de que lhe sobram poucos dias sobre a terra, Teresa não demonstra ser uma mulher desorientada, e muito menos desesperada. O seu sofrimento não tem nada de estoicismo. Está na verdade habitada por uma profunda alegria.

            O sofrimento não a espanta mais, nem a amedronta; ao contrário une-a ainda mais a Jesus: “A cada nova ocasião de combate [...] corro para meu Jesus” (Ms C 7r).

            Teresa, nestas paginas revela sua vocação apostólica. Ela própria anteriormente na carta que escreve a Ir. Maria do Sagrado Coração diz que a carmelita tem vocação de Esposa e Mãe (cf. Ms B 2v). Serão nas páginas deste último manuscrito que podemos vislumbrar o zelo apostólico que lhe alimentava o coração e preenchia os seus pensamentos. Ela não vive para si, está entregue totalmente à Igreja. Não pensa apenas nos limites da sua comunidade, mas tem diante de si a Igreja inteira. Tudo o que diz respeito à Igreja, lhe diz respeito também.

            Relata as grandes descobertas que Deus lhe permite fazer: a pequena via, sua vocação missionária, a compreensão da caridade, a liberdade de espírito, o amor e as obras, o valor da oração, a participação na missão dos irmãos espirituais, e a direção das almas no noviciado.

            Acompanharemos Teresa pelas paginas do seu ultimo manuscrito, pedindo ao Senhor a graça de aprender com ela. Teresa é nossa irmã! Nela Deus quer dar-nos uma amostra daquilo que deseja realizar em cada um de nós. Deixemo-nos guiar por Teresa, dóceis a ação do Espírito Santo que sopra onde e como quer.

            Há uma primeira palavra de Teresa que gostaria de propor a nossa oração, no início do nosso retiro. Referindo-se ao modo como Madre Maria do Gonzaga lhe trata, Teresa afirma:

            “ Todas as criaturas podem inclinar-se, para ela, admirá-la, cumulá-la com seus louvores, não sei por que mais isso não poderia acrescentar uma só gota de falsa alegria à verdadeira alegria que ela saboreia em seu coração, ao se ver o que ela é aos olhos de Deus: um pobre nadinha, nada mais...” (2r)

            Há um elemento no início deste manuscrito que dá o tom de todo o texto: é a alegria. Teresa fala da “verdadeira alegria”. Ela diz que não teme mais a “falsa alegria” que poderia surgir do elogio e da ternura que recebe das criaturas. Não! Ela está alicerçada na “verdadeira alegria”, ou seja, “ao se ver o que ela é aos olhos de Deus um pobre nadinha, nada mais...” A causa da sua alegria é reconhecer o seu nada, aquilo que é aos olhos de Deus: um “pobre nadinha”.

            Quando acompanhamos a vida de Teresa vamos vendo o quanto lhe custou reconhecer o seu “pobre nadinha”. Seu caminho é o caminho do esvaziamento, do despojamento, do empobrecimento... é o caminho que leva ao nada e no nada encontra o Tudo. Fiel discípula de sua pai São João da Cruz, Teresa sobe o “monte” que é o Tudo do Deus Amor, pela via do nada, do esvaziar-se, do despojar-se voluntariamente, do entregar-se e oferecer-se, a ponto de não colocar mais resistência. É o caminho do amor! É o caminho de Jesus!

            Neste nosso primeiro encontro com Teresa precisaríamos pedir a Deus a graça de reconhecer o nosso “pobre nadinha”, reconhecer o quanto precisamos desvencilhar-nos, desprender-nos, despojar-nos para nos tornarmos livres para amar, para a maturidade do amor. Como fez Teresa, como fez Jesus!

            Aí encontramos a verdadeira alegria.

            As palavras de Teresa nos fazem pensar em Francisco de Assis. Em que consiste a verdadeira alegria? São Francisco diz ao Frei Leão que a perfeita alegria consiste em ser tratado como um “nada”, como um desconhecido, como um miserável. A perfeita alegria é ter percorrido um longo caminho e ao chegar no convento de frades, sob a chuva e a o frio gelado, ser jogado para fora e tratado como malfeitor. Aí está a verdadeira alegria. A alegria em reconhecer o próprio nada.

            “Aquilo que se é aos olhos de Deus” – um nadinha amado por Deus. Deus ama o nosso nada, a nossa pequenez.

            Quando escreve a Ir. Maria do Sagrado Coração, S. Teresa diz: “ Quanto mais se é fraco, sem desejos e virtudes, tanto mais se está apto às orações deste Amor consumidor e transformante...Onde encontrar o verdadeiro pobre de espírito? É preciso procurá-lo longe, diz o salmista. Não diz que é preciso buscá-lo entre as grandes almas, mas “bem longe”, ou seja, na baixeza, no nada...Ah! Permaneçamos, portanto bem longe de tudo aquilo que brilha, amemos nossa pequenez, amemos o não sentir nada. Então seremos pobres de espírito e Jesus virá nos procurar. Por mais longe que estejamos, ele nos transformará em chamas de amor...Oh! Como gostaria de poder vos fazer compreender aquilo que sinto! É a confiança, e nada mais que a confiança, que nos deve conduzir ao Amor...” (Carta 197)

            Precisaríamos pedir a graça de perscrutar as palavras de Teresa sobre o “pobre nadinha” amado por Deus, querido por Deus, procurado por Deus!

            É esta graça que lhes proponho suplicar no início destes dias: a graça de amar a nossa pequenez e nossa pobreza e a esperança cega na Misericórdia de Deus! (cf. Carta 197), pois aí está a raiz e a certeza da nossa alegria.

*Reflexões em um Retiro sobre Santa Teresinha do Menino Jesus. (1ª Parte).