Contexto histórico geral

Para conhecer as origens da Ordem do Carmo é indispensável colocá-las no seu contexto histórico. O período que vê nascer os Carmelitas é a Idade Média que, na realidade, abrange praticamente dez séculos de história do Ocidente. Só pelo fato de ser tão extenso, percebe-se a dificuldade de dar uma caracterização englobante desse período. No entanto, alguns traços — não obstante suas variações regionais — são constantes. Em primeiro lugar, o acentuado teocentrismo. Todo o visível repousa no invisível, disse, com acerto, um pensador da época. Para o homem medieval, Deus está onipresente e toda a realidade é profundamente marcada pela sua ação. Aliás, a própria cosmovisão medieval reflete notoriamente a centralidade do divino e a orientação transcendental de toda a vida na terra. É nessa época que se consolida o que costumamos chamar de cristandade, isto é, um pacto entre os dois poderes que regem a sociedade: o espiritual, identificado com a hierarquia eclesiástica, particularmente o Papa, e o poder temporal entregue ao chefe civil-político. Na mentalidade medieval todo o poder provém diretamente de Deus que o confia ao Vigário de seu Filho encarnado na terra, ou seja ao Romano Pontífice. Nesse contexto surge a teoria das duas espadas, frequentemente atribuída a São Bernardo de Claraval (1090-1053). O texto bíblico de referência é Lc 22,38, onde lemos: “Disseram [os apóstolos]: Senhor, eis aqui duas espadas. Ele respondeu: é suficiente!” Na interpretação medieval as duas espadas pertenceriam, por direito divino, a Pedro. Uma está nas suas mãos e a outra às suas ordens. A hermenêutica é de surpreendente simplicidade: a espada espiritual é própria da função petrina, enquanto a espada temporal o Papa passa ao governante civil, para usá-la segundo as intenções de seu outorgante. Assim, na realidade, todo o poder concentra-se naquele que é considerado o “lugar-tenente de Cristo na terra”. Está aqui o núcleo da teocracia pontifícia cultivada na Idade Média, não sem constantes contestações e declaradas oposições.

Outra característica medieval, mas intimamente associada à precedente, é, sem dúvida, a chamada reductio ad unum, isto é, o esforço de ‘reduzir’ tudo a um único denominador: Deus, princípio e fim de todas as coisas e legalmente representado pela Instituição Eclesiástica que praticamente se identifica com o Reino de Deus, visto que muitos a consideram como sua realização, já aqui na terra. Tudo que não entra nesta lógica deve ser combatido e, na medida do possível, eliminado. Exige-se total conformidade ao modelo implantado e submissão dócil às autoridades instituídas. Percebe-se facilmente que em semelhantes circunstâncias a Inquisição surge e se consolida como instrumento apropriado para a manutenção do status quo, controlando e reprimindo tudo que não se enquadra na ideologia adotada.

O homem medieval tem acurada sensibilidade quanto à transitoriedade da vida. Para ele, ser transeunte constitui uma realidade viva, sempre de novo recordada. A terra é — pelo menos no esquema mental — apenas um exílio, um curto tempo de permanência. A verdadeira pátria situa-se no além. As peregrinações dão expressão concreta a essas convicções. Na realidade, trata-se de um fenômeno antiquíssimo na História do cristianismo. Já nos primeiros séculos temos notícias de peregrinações à Terra Santa, por exemplo, da galega Etéria que, em fins do século IV, empreendeu uma viagem aos lugares sagrados. Deixou uma minuciosa descrição de seu itinerário que, ao que tudo indica, durou aproximadamente três anos. O movimento rumo à região onde Jesus viveu e morreu nunca cessou e, em determinados momentos da História, adquire particular intensidade. Na mente do medieval, Palestina constitui uma imensa relíquia, um preciosíssimo patrimônio sagrado da Cristandade. Nela tudo é santo pelo fato de o próprio Jesus ter tocado a terra e nela derramado seu precioso sangue. Poder pisar em terreno tão sacro e ter contato físico com os lugares onde a presença do Senhor se faz sentir tão intensamente, é o sonho amplamente acalentado nesse período da História. Jerusalém, local do Santo Sepulcro, é objeto de incontida devoção, símbolo de toda uma concepção religiosa voltada para o além: “Vós vos aproximastes do Monte Sião e da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste; da reunião festiva de milhões de anjos; da assembleia dos primogênitos, cujos nomes estão escritos nos céus. Vós vos aproximastes de Deus, o Juiz de todos; dos espíritos dos justos, que chegaram à perfeição, de Jesus, o Mediador da nova aliança e da aspersão com sangue mais eloquente que de Abel” (Hb 12,22-24).

A societas christiana, a sociedade cristã medieval, considera o ‘mundo’ como seu ‘corpo’ e a ‘Igreja’ como sua ‘alma’. Via com maus olhos o avanço do Islã, exatamente nas regiões onde o cristianismo teve seu berço e primeira expansão. Paulatinamente se fixa no ideário medieval um declarado sentimento anti-islâmico, que chegou a ter traços de uma demonização de seus seguidores.Na Península Ibérica — invadida pelos mouros em 753, quando Djebel-el-Tarik atravessou o Estreito de Gibraltar — desenvolve-se uma contra-ofensiva aos muçulmanos que entrou na História com o nome de Reconquista Cristã. Durou nada menos do que cinco séculos até que, em 1492, os Reis Católicos conseguiram expulsá-los de seu último reduto, a cidade de Granada.

Para situarmos a origem da Ordem do Carmo não podemos deixar de mencionar dois fenômenos tipicamente medievais: o eremitismo e as Cruzadas.

O ano Mil inaugura um novo período na História da Europa. A tremenda crise dos séculos IX e X, denominado Século de Ferro, cede lugar a uma renovação da sociedade e da própria Igreja. Significativo é o movimento de progressiva urbanização e de intensificação comercial. A sociedade rural, identificada com o feudalismo, deixa de ser a forma predominante da organização socioeconômica. Os incipientes burgos (cidades) apresentam modalidades alternativas e muito mais atraentes de convivência e realização humana. Junto com as transformações econômicas, vêm as transformações intelectuais e espirituais.

“O despertar da cidade leva a transferir o centro da gravitação político-social do castelo feudal no campo para os povoados e para as cidades. A cultura intelectual cresce muito através da criação das Universidades, saindo, assim, dos palácios e da corte feudal. A mesma cultura renovada se traduz em expressões cracterísticas na arte (romano, gótico), na especulação filosófica e teológica (as Sumas), na literatura das línguas neolatinas. A ‘nova intelectualidade’ levanta questionamentos antes desconhecidos. Através de um amplo fenômeno de urbanismo vem a transformar-se o próprio conceito de cidade, de centro urbano. Nasce, então, a comuna (hoje, mais ou menos, o município), típica estrutura social da nova época que está surgindo. A definição desta estrutura leva à criação de formas de governo com a participação popular.” (1)

O monaquismo tradicional dos grandes mosteiros, com suas imensas propriedades e ostentação de poder e prestígio, entra em decadência, mostrando incapacidade de adaptação aos novos tempos. Os monges são questionados exatamente por sua riqueza comunitária excessiva decorrente de sua vinculação ao sistema feudal. O século XI vê renascer formas de Vida Religiosa alternativas, particularmente o eremitismo. Esse fato assinala claramente uma ruptura com os tradicionais modelos de sociedade e de Igreja. Os novos eremitas contestam estruturas institucionais que imobilizam e facilitam a acomodação. Optam por um estilo de vida que favorece a itinerância e expressa a provisoriedade da vida aqui na terra, proporcionando, inclusive, maior liberdade interior. Dão, assim, uma resposta às aspirações de mobilidade tão marcantes no surgimento da vida urbana e impulsionada por intenso intercâmbio comercial.

O eremitismo — prevalentemente de caráter laical — conhece uma grande expansão nos séculos XI e XII. As formas são variadas, desde os solitários estabelecidos em lugares completamente afastados, quase inacessíveis, até eremitas que, a exemplo das antigas ‘lauras’ da Palestina, vivem em pequenos grupos, numa combinação de anacorismo e cenobitismo,assumindo, inclusive, atividades apostólicas compatíveis com seu estilo de vida. Há eremitas que não se fixam por muito tempo em lugares determinados, mas se deslocam constantemente à guisa de peregrinos.

“O que se devia entender por este nome de ‘eremita’, não era sujeito a nenhuma dúvida na Idade Média. Os elementos da vida eremítica, que todos os autores de todos os tempos que escreveram sobre esta questão sempre e sempre enumeraram, são estes: solidão, leituras, oração, contemplação, trabalho manual. Jejuns, vigílias e obras de misericórdia. Ouçamos a oração de certo pontifical da Inglaterra, para depor o hábito secular e vestir o hábito eremítico ‘Irmão, eis que te damos o hábito eremítico, com o qual te exortamos a viver, desde logo, casto, sóbrio e santo, em santas vigílias, jejuns, trabalhos, orações e obras de misericórdia, para que tenhas a vida eterna e vivas pelo séculos dos séculos’.” (2)

Com seu modo de ser os ermitães denunciam uma Igreja por demais instalada e segura de si. Testemunham o caráter transitório da vida cristã: “Não temos aqui embaixo cidade permanente, mas estamos à procura da cidade que está para vir” (Hb 13,14). Experimentam a si mesmos como transeuntes, viajores, exilados ou ‘soldados de Cristo’, em busca do deserto, da solidão, para lá travar a batalha contra os ‘inimigos’, tanto os de fora quanto os de dentro. Desenvolve-se aqui uma espiritualidade de militância, magistralmente descrito por São Paulo. (3) O apóstolo dos gentios esclarece que o caminho do cristão é marcado por muitos obstáculos. Ele é chamado a conservar e defender sua mais profunda identidade. Embora já feito participante da vitória de Cristo sobre o pecado e a morte (cf. Ef 1,19-23), ainda peregrina no meio de ‘muitas tribulações’. As ‘forças do mal’ constituem uma ameaça tão real que Paulo as personifica. Trata-se de verdadeiros ‘inimigos’ que investem contra a ‘verdade de Cristo’. São ‘espíritos malignos’, dotados de energias destruidoras, quer conduzem à morte (cf. 2Ts 2,7-12; 1Cor 15,24; Ef 2,1-3;6,10-16; Cl1,9-15). O Apóstolo detecta sua ação maléfica, falando de ‘insídias do diabo’ (Ef 6,16), ‘laço do demônio’ (1Tm3,7; 2Tm 2,26), ‘príncipe do poder do ar’(Ef 2,2), ‘espírito que opera nos filhos da desobediência’ (Ef 2,2), ‘tentador’ (1Ts 3,5), exterminador’ (1Cor 10,10) e ‘deus deste mundo’ (2Cor 4,4).

O eremitismo peregrinante ou, talvez seja melhor chamá-lo de peregrinação eremítica, constitui um fenômeno altamente significativo no cristianismo medieval. O peregrino se expatria a fim de obter a purificação interior com a expiação de seus pecados. Aceita, de bom grado, os cansaços, jejuns, vigílias e os numerosos contratempos da viagem. Sua meta é o encontro com o ‘sagrado’, a chegada ao lugar santo, onde Deus se faz visivelmente presente no santuário com suas imagens e relíquias, diretamente ligados à pessoa histórica de Jesus ou a alguns de seus amigos, os santos e santas. São João Damasceno (+749) afirma, sem rodeios, que semelhantes lugares e objetos sagrados podem ser considerados “receptáculos de energia divina, pela qual a salvação de Deus vem a nós” [Oratio de imaginibus III, n.2]. Enfim, a peregrinação simboliza o próprio sentido da existência cristã: estar a caminho rumo à Casa do Pai [cf. também Concílio Vaticano II, LG,n.9 e UR, n.2].

Na Idade Média o destino privilegiado das peregrinações era, sem dúvida, a Palestina, onde se encontrava o “Santo Sepulcro”. A viagem para Jerusalém (peregrinatio hierosolymitana), freqüentes vezes, tornava-se um ‘modo de vida ascético’ (propositum). Assim, “a promessa de ir à Terra Santa era um voto no sentido jurídico-canônico ou eclesiástico (propositum sanctae peregrinationis, eudi utra mare — propósito de santa peregrinação, de ir além do mar). Somente o Papa podia dispensar alguém deste voto. Não raramente tal voto incluía a obrigação de a pessoa ficar sempre na Terra Santa (inde as própria nunquam reversurus — de nunca voltar para os próprios lugares)”. (4)

Desde que os muçulmanos se apoderaram das regiões do Oriente Próximo, incluindo a Palestina, entre 632 e 750, as peregrinações à Terra Santa sofreram restrições, embora nunca fossem totalmente interrompidas. A situação mudou quando, por volta de 1070, os maometanos seljúdicos (‘turcos’) ocuparam aquelas plagas, dificultando o acesso aos lugares santos. As peregrinações tornaram-se aventuras perigosas. Diante desses fatos, surge no Ocidente um movimento para libertar a Terra Santa, que, no Concílio de Clermont (1095) encontrou grande ressonância com o insistente apelo do Papa Urbano II (1088-1099). A tradição situa aqui o grito uníssono da cristandade: Deus lo volt, com a convocação de milhares de voluntários para ‘pegar em armas’ e partir rumo à missão. Em sinal de adesão aplicam no ombro direito uma cruz vermelha, donde a denominação: cruzados. Pregadores populares, como Pedro de Amiens (c.1150-1115), reforçam, com sua pregação inflamada, o apelo do Pontífice. As peregrinações armadas são apoiadas por reis e príncipes e motivadas por uma verdadeira mística guerreira. As expedições apresentam-se como ‘uma batalha entre o bem e o mal’, tal como é descrito no Livro bíblico do Apocalipse para ‘os últimos dias’. A Cruzada adquire, assim, o significado de um deslocar-se da Europa para Jerusalém, simbolizando a emigração espiritual com uma radical mudança de vida. A passagem ultramarina toma o sentido de uma expatriação a fim de poder chegar ao limiar do Reino dos Céus, materialmente representado pela Cidade Santa.

A história das Cruzadas, que abrange aproximadamente dois séculos, é muito controvertida. Misturam-se aqui as mais puras intenções religiosas com os mais baixos sentimentos de vingança e interesses pessoais, completamente alheios ao Evangelho. Entram em jogo objetivos políticos, comerciais, rivalidades e saques. Ao mesmo tempo, não podemos desconhecer que manifestam uma expressão da unidade de fé, não obstante a diversidade de culturas e povos.

Jerusalém foi conquistada em 1099. Fundaram-se estados cristãos: o principado de Antioquia, o principado de Edessa, o reino de Jerusalém e o principado de Trípoli, na Síria. Sucessivamente, os reinos latinos caem novamente nas mãos dos muçulmanos: Edessa em 1187, Jerusalém em 1244 e, finalmente, o último baluarte dos cruzados: Dão João de Acre, em 1291. Embora não tenha conseguido sua meta principal: a posse da Terra Santa e sua consolidação nas mãos dos cristãos, as Cruzadas tiveram um papel importantíssimo no campo econômico, cultural e intelectual. O Papa viu crescer seu prestígio como chefe religioso e político, culminando na figura de Inocêncio III (1198-1216) que declarou abertamente: “O Papa é o representante dAquele a quem pertence a terra e tudo que a contém e daqueles que a habitam... ele é o plenipotenciário dAquele que dá os reinos a quem bem lhe agrada”. Assim, tem “o poder de alterar, destruir, dissipar, edificar e plantar”. O Romano Pontífice está “acima de todos os príncipes, pois possui o direito de julgá-los”. Semelhantes idéias teocráticas serão retomadas na Bula Unam Sanctam, de Bonifácio VIII (1294-1303) que, numa carta a Alberto de Brandenburgo afirma: “Assim como a lua não possui nenhuma luz senão aquela que recebe do sol, da mesma forma não existe autoridade terrena que não recebe seu poder da Igreja... Toda a autoridade vem de Cristo e de Nós, como Vigário de Jesus Cristo”.