A Ordem sempre afirmou que a contemplação está no coração de nossa vocação. O Institutio Primorum Monachorum, que desde o século 14 foi o documento para a formação de todos os jovens carmelitas, diz: “O objetivo dessa vida tem duplo sentido: Uma parte alcançamos através de nosso próprio esforço e do exercício das virtudes, com a ajuda da graça divina. Isso significa oferecer a Deus um coração que é sagrado e puro da verdadeira mancha do pecado. Alcançamos este objetivo quando somos perfeitos e ‘in Carith’, isto é, escondido naquela caridade que o Homem Sábio diz: ‘O amor cobre todas as ofensas’ (Pr 10,12). ... O outro objetivo desta vida nos é concedido como um dom gratuito de Deus; ou seja, saborear algo no coração e experimentar na mente o poder da presença divina e da doçura da glória celestial não apenas após a morte mas também nesta vida mortal (Livro 1, cap. 2). Santa Teresa e São João da Cruz foram formados na tradição carmelitana e conduziram a Ordem de volta à sua inspiração inicial, assim como todas as outras reformas através da história da Ordem. Santa Teresa e São João da Cruz são modelos de gênios espirituais e, para aqueles que desejam compreender mais o desenvolvimento da contemplação dentro da pessoa, é essencial estudar estes santos.

Nesta apresentação do carisma carmelitano, a Ordem declara nas Constituições dos frades: “Os carmelitas buscam viver em fidelidade a Jesus Cristo através do compromisso de buscar a face do Deus vivo (a dimensão contemplativa da vida), através da fraternidade e do serviço no meio do povo” (Const. 14). Outro artigo nas Constituições diz: “A tradição da Ordem tem interpretado a Regra e o carisma inicial como expressões da dimensão contemplativa da vida e os grandes mestres espirituais da Família Carmelitana sempre se voltaram para esta vocação contemplativa” (Const. 17). De acordo com as Constituições, a contemplação “é uma experiência transformadora do amor esmagador de Deus. Esse amor nos esvazia de nossa maneira humana de pensar, amar e agir, limitada e imperfeita, divinizando-a” (Const. 17). Nas Constituições das Congregações afiliadas e na recentemente aprovada Regra da Ordem Terceira, aparece a mesma insistência na contemplação.

A Ratio Institutionis Vitae Carmelitanae (o documento da formação ao qual nos referiremos como Ratio) dos frades, esclarece o papel da contemplação no carisma da Ordem: “A dimensão contemplativa não é meramente um dos elementos de nosso carisma (oração, fraternidade e serviço): ela é o elemento dinâmico que os une.

Na oração nos abrimos para Deus que, por sua ação, nos transforma gradualmente através de todos os grandes e pequenos eventos de nossas vidas. Esse processo de transformação nos possibilita iniciar e manter relacionamentos fraternos autênticos. Ele nos faz desejosos de servir, capazes de compaixão e de solidariedade, e nos permite colocar diante do Pai as aspirações, angústias, esperanças e súplicas do povo.

A fraternidade é o teste básico da autenticidade da transformação que está acontecendo dentro de nós” (Ratio 23). A Ratio continua dizendo: “Através dessa transformação gradual e contínua em Cristo, que é realizada dentro de nós pelo Espírito, Deus nos chama em sua direção numa jornada interior que nos leva das margens dispersivas da vida ao âmago de nosso ser, onde Deus mora e nos une a ele.

O processo interior que leva ao desenvolvimento da dimensão contemplativa nos ajuda a adquirir uma atitude de abertura à presença de Deus em nossa vida, nos ensina a ver o mundo com os olhos de Deus e nos inspira a buscar, reconhecer, amar e servir a Deus naqueles que estão à nossa volta” (Ratio 24).

O objetivo da jornada contemplativa é nos tornarmos amigos amadurecidos de Jesus Cristo a tal ponto que seus valores se tornem nossos valores e comecemos a ver com os olhos de Deus e a amar com o coração de Deus. A contemplação autêntica deve encontrar expressão num compromisso de serviço, quer seja realizado através de um apostolado ativo, quer dentro de um mosteiro. Quando contempla o mundo, Deus vê para além do exterior. Deus vê a motivação do coração humano. A autêntica experiência de Deus de uma comunidade contemplativa nos leva a tornar nossa “a missão de Jesus, que foi enviado para proclamar a Boa Nova do Reino de Deus e a realizar a libertação total da humanidade de todo pecado e opressão” (Ratio, 38).

 

Ver com os olhos de Deus

No documento pós-sinodal Vita Consacrata, o papa João Paulo II afirma: “No início de seu ministério, na sinagoga de Nazaré, Jesus anuncia que o Espírito o consagrou para evangelizar os pobres, proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor (cf. Lc 4,16-19). Assumindo a missão do Senhor como sua, a Igreja proclama o Evangelho a todo homem e mulher comprometendo-se com sua salvação integral. Mas com especial atenção, numa opção realmente preferencial, ela se volta para aqueles que suportam grande fraqueza e, portanto, são carentes. ‘Os pobres’, em diversos estados de aflição, são os oprimidos, aqueles às margens da sociedade, os anciãos, os enfermos, os jovens, qualquer um e todos que sejam considerados e tratados como ‘os últimos’. A opção pelos pobres é inerente à própria estrutura do amor vivido em Cristo. Portanto, todos os discípulos de Cristo são fiéis a esta opção. Mas aqueles que desejam seguir o Senhor mais de perto, imitando suas atitudes, sentir-se-ão envolvidos de modo muito especial. A sinceridade de sua resposta ao amor de Cristo os levará a viver uma vida de pobreza e a abraçar a causa do pobre. De acordo com o carisma, para cada instituto, isto significa adotar um modo de vida simples e austero, tanto como indivíduo quanto como comunidade. Fortalecidas por esse testemunho vivo e, de certa forma, consistente com sua opção de vida e mantendo sua independência diante das ideologias políticas, as pessoas consagradas serão capazes de denunciar as injustiças cometidas contra tantos filhos e filhas de Deus e  a comprometerem-se com a promoção da justiça na sociedade onde trabalham” (VC 82).

Fiéis às Escrituras, a Igreja e a Ordem fizeram a opção preferencial pelos pobres porque Cristo foi enviado para levar a Boa Nova aos pobres (Lc 4,18). Não podemos permanecer insensíveis diante do apelo dos pobres (cf. Ex 22, 22.26; Eclo 21,5). Um compromisso com a Justiça e a Paz significa, necessariamente, fazer algo concreto pelos pobres mas também exige fazer perguntas. Por que existe essa situação? O que podemos fazer? Obviamente as razões para a situação de pobreza de tantos no mundo e as razões para a falta da verdadeira paz são extremamente complexas. Esta opção preferencial vem de uma vocação contemplativa. “A autêntica jornada contemplativa nos permite descobrir nossa própria fragilidade, nossa fraqueza, nossa pobreza, - em suma, o nada da natureza humana: tudo é graça. Através dessa experiência, crescemos em solidariedade com aqueles que vivem em situação de privação e de injustiça. Quando nos permitimos ser desafiados pelos pobres e oprimidos, somos gradualmente transformados e começamos a ver o mundo com os olhos de Deus e a amar o mundo com seu coração. Com Deus, ouvimos o clamor dos pobres e nos empenhamos em partilhar o cuidado, o interesse e a compaixão Divina pelos mais pobres e menores.

 Isso nos leva a profetizar diante dos excessos do individualismo e do subjetivismo que vemos na mentalidade de hoje – diante das muitas formas de injustiça e de opressão dos indivíduos e dos povos” (Ratio, 43).

A razão fundamental para a existência de tanta pobreza no mundo está nas profundezas do coração humano. É um grande erro culpar apenas os outros por esta situação, porque cada um de nós tem alguma responsabilidade. O compromisso com a Justiça e a Paz deve estar de mãos dadas com o processo contemplativo de assumir a vontade de Cristo, de forma que nosso serviço aos pobres não se torne um modo sutil de fazer com que os pobres nos sirvam. O coração humano é muito ambíguo e, para servir de acordo com a vontade e o coração de Deus, devemos nos submeter à purificação profunda, que é uma parte íntima do processo contemplativo (Tg 4,8; Hb 4,12-13).

*O DEUS DA NOSSA CONTEMPLAÇÃO. CARTA DO PRIOR GERAL À FAMÍLIA CARMELITA.  01 de Janeiro de 2004, Solenidade de Maria Mãe de Deus-Dia Mundial de Oração pela Paz. Joseph Chalmers, O. Carm., Prior Geral