RUMO AO MONTE CARMELO NA LUTA PELA JUSTIÇA SOCIAL: UM OLHAR PARA A ESPIRITUALIDADE CARMELITANA SOB A ÓTICA DO PROFETISMO - DENÚNCIA E ANÚNCIO
Por Frei Gilvander Moreira[1]
Que beleza realizarmos mais um Encontro da Família Carmelitana do Brasil, no Santuário Nacional de Aparecida do Norte, SP, com o Tema: Peregrinos de Esperança rumo ao Monte Carmelo! Momento de kairós, tempo propício para fraternalmente vivenciarmos a proximidade entre as diversas expressões da Família Carmelitana do Brasil sob a ótica do Ano Jubilar e, em oração, reflexão e encontro, seguirmos caminhando unidos/as buscando nos abastecer espiritualmente para cotidianamente colocarmos em prática o carisma carmelitano, que se constitui no tripé: Fraternidade, Contemplação e Profetismo.
Importante ressaltar que estas três dimensões do nosso carisma se inter-relacionam, ou seja, para testemunharmos uma vida de fraternidade é preciso sermos pessoas contemplativas e proféticas. Para sermos pessoas contemplativas precisamos vivenciar a fraternidade ad intra e ad extra e exercermos a profecia. E não dá para sermos pessoas proféticas se não somos pessoas fraternas e contemplativas.
Faz bem recordarmos que a fraternidade autêntica tem duas dimensões que se alimentam mutualmente: a fraternidade interna na nossa comunidade e a fraternidade externa com o povo da nossa cidade e na sociedade, prioritariamente fraternidade com as pessoas empobrecidas.
A contemplação não pode ser reduzida à noção de ficar meditando, estático e tentando, de olhos fechados, observar o mistério de Deus. A palavra ação está na palavra contemplAÇÃO. Logo, o sentido mais profundo de contemplação diz respeito a assimilar o jeito de ser e de agir de Deus, mistério de infinito amor que nos envolve, tão bem nos revelado por Jesus Cristo. Em outras palavras, uma pessoa contemplativa vive, convive e atua sendo expressão do reflexo da luz e da força divina no mundo. Assim como na segunda metade do século I da era cristã, pessoas das comunidades cristãs da periferia da grande cidade de Antioquia perceberam que os discípulos e as discípulas de Jesus Cristo eram tão parecidas com o mestre galileu que disseram pela primeira vez: “Estes são cristãos” (At 11,26), quer dizer, semelhantes a Cristo.
A dimensão da Profecia no Carisma Carmelitano, que é o nosso tema aqui, não se reduz a serviço pastoral. Faz bem recordarmos um pouco o que a Bíblia nos diz sobre a dimensão profética da vida. A Bíblia respira profecia do Gênesis ao Apocalipse: “Se calarem a voz dos profetas...” Centenas de vezes aparece na Bíblia a expressão Palavra de Javé/Deus, sempre para indicar profecia. Ora dizendo: consolai os aflitos, e outra hora pedindo: incomodai os exploradores! Ninguém pode tocar o corpo dos escritos proféticos na Bíblia e na vida sem sentir a batida do coração divino.
A partir do livro do Êxodo, constatamos como Javé é um Deus que ouve os clamores das pessoas escravizadas e desce para libertá-las (Ex 3,7-9). No início do Gênesis, se diz que o Espírito está nas águas, permeia e perpassa tudo (Gn 1,2). Tendo “nascido de mulher” (Gl 4,4), em Jesus de Nazaré, Deus se encarna, descendo e assumindo a condição humana. O livro do Apocalipse nos diz que Deus larga o céu, desce, arma sua tenda entre nós e vem morar conosco definitivamente (Ap 21,1-3). Nosso Deus não é apenas um Deus transcendente, mas transdescendente, pois está sempre descendo e abraçando o humano nas entranhas da história, dos fatos e acontecimentos. Nosso Deus age na história.
Pessoa profética é porta voz do Deus da vida, não só pelo que fala, mas principalmente por ser testemunha viva do projeto de vida anunciado pelo Evangelho de Jesus Cristo. A palavra “profeta” vem do verbo pro-ferir, que significa falar por antecipação. Etimologicamente a palavra “profeta” significa “aquele que profere uma mensagem em nome de Deus”. O profeta e a profetisa escutam o Oráculo de Deus. Os oráculos proféticos, normalmente, são introduzidos com uma fórmula característica: “Assim disse Javé....” ou “Oráculo de Javé” (Jr 9,22-23). A expressão “ne’um YAHWEH”, em hebraico, geralmente traduzida por “oráculo de Javé” ou “Palavra de Javé”, significa "sussurro, cochicho de Deus no ouvido do profeta ou da profetisa".
Para entender um cochicho, um sussurro, é preciso fazer silêncio, prestar muita atenção, estar em sintonia, ter proximidade, ser amigo etc. Portanto, Deus não falava claramente aos profetas, como nós, muitas vezes pensamos que falava. Do mesmo modo que falava aos profetas e profetisas, Deus fala hoje a nós. Deus cochicha (sussurra) em nossos ouvidos a partir da realidade do povo, prioritariamente a partir dos empobrecidos e superexplorados. Precisamos colocar nossos ouvidos e nosso coração pertinho do coração das pessoas injustiçadas para que possamos escutar Deus. Mais do que fazer cursos de oratória, precisamos de cursos de escutatória. Para ouvir os clamores mais profundos das pessoas violentadas na sua dignidade é necessário conviver com elas.
Todas as vezes que na Bíblia fala que “desceu o Espírito de Deus sobre...” diz também que os atingidos pelo Espírito de Deus começam a profetizar (cf. Nm 11,29; At 19,4-6). A profecia é uma consequência direta da ação do Espírito Santo. Logo, um bom critério para saber se estamos vivendo uma verdadeira experiência no Espírito de Deus é nos perguntar: “Estamos nos tornando pessoas proféticas?”
Na Bíblia, encontramos várias fases da profecia. Ao mudar o contexto histórico, a profecia muda também o jeito de ser realizada. Inicialmente, profetas eram conselheiros do rei. Acreditava-se que com boa orientação as autoridades não iriam se corromper e seriam fieis à vivência da ética, do amor ao próximo e solidárias com todos e todas. Mas depois, profetas perceberam a necessidade de denunciar reis, sacerdotes, falsos profetas, príncipes que estavam se corrompendo no exercício do poder, seja ele político, religioso ou econômico. Entretanto, outros profetas descobriram que não bastava denunciar as mazelas, injustiças, violências e corrupções de autoridades, mas que precisavam denunciar o sistema da monarquia, pois o sistema monárquico estava gerando e reproduzindo opressões e explorações. De fato, é muito difícil ser íntegro em um ambiente e contexto opressor e explorador.
Com a dominação imposta pelo Império Assírio, depois pelo Império Babilônico, o que desmantelou a autonomia e a soberania que o povo tinha conquistado na terra prometida por Deus, tendo sido o território invadido, Jerusalém e o templo destruídos e o povo enxotado para o exílio, o sofrimento se tornou quase insuportável e exigiu que os profetas e as profetisas, para serem mensageiros/as de Deus no meio do povo exilado, exercessem o consolo e anunciassem projetos de esperança. Muita gente chegou a pensar: “Deus nos abandonou” (Lm 3,31-33; Jer 25,38; Rm 1,24). Outros perguntavam angustiados: “Onde está Deus?” (Sl 115,2-3; 1 Rs 19; Jo 4,23-24). Em contexto parecido com um vale de ossos ressequidos (Cf. Ez 37,1-14), ser pessoa terna, compassiva, amorosa, acolhedora e solidária se tornou sinal de que Deus estava no meio do povo e esta experiência resgatou a esperança de que as injustiças poderiam ser superadas, pois se experimentava que Deus estava presente no meio do povo sofrido, mas que continuava vivendo relações de fraternidade. Em tempos de exílio, de profundo opressão, a profecia clama para ser vivenciada como solidariedade, conforto, ternura, cuidado, presença amorosa ao lado de quem está sofrendo muito.
Com o caminhar da história, em contexto de internacionalização, a profecia assumiu a roupagem de apocalíptica. Tornou-se necessário usar linguagem simbólica, animar a resistência, cultivar a esperança, denunciar as injustiças e anunciar projetos de esperança, mas com muita criatividade. Em tempos de ditadura militar, no estilo de profecia em roupagem apocalíptica, Chico Buarque e Milton Nascimento cantavam: “Pai, afasta de mim este cálice (= cale-se!)”, atualizando a profecia dos Evangelhos de Mateus (Mt 26,39) e Lucas (Lc 22,42).
Para nós carmelitas é uma graça, mas também grande responsabilidade termos como inspiradores do nosso carisma os profetas Elias e Eliseu e Maria, a mãe de Jesus e nossa mãe, que no seu jeito de viver combinou muito bem Fraternidade, Contemplação e Profecia.
O Profeta Elias foi um intransigente defensor dos pequenos. Elias se fez solidário e teve a coragem de denunciar a brutal injustiça e violência praticada pelo rei Acab e a rainha Jezabel, seguidores do ídolo Baal. Em meados do século IX a.C., o profeta Elias ferveu o sangue de indignação quando ouviu e viu que o rei Acab, a primeira dama Jezabel e latifundiários estavam reforçando a latifundiarização da terra prometida pelo Deus da vida ao povo Sem Terra, filhos/as de Abraão e Sara. A terra para o povo da Bíblia é herança de Deus (Lev 25,23-26: “A terra a Deus pertence...”), deve ser passada de pai para filho/a para usufruto; jamais ser considerada uma mercadoria. “Javé me livre de vender a herança de meus pais” (I Rs 21,3), respondeu Nabot, um pequeno agricultor, ao receber uma proposta indecorosa do rei que desejava comprar seu sítio para anexá-lo ao grande latifúndio que já tinha acumulado. O rei Acab se irritou com a resistência de Nabot. Jezabel, rainha adepta do ídolo Baal, manipulou a religião e a justiça para roubar a terra do sitiante. Caluniou, criminalizou e demonizou Nabot que, com o beneplácito do poder Judiciário, foi condenado à pena de morte na forma de apedrejamento. Morte que mata aos poucos. Hoje, o “apedrejamento” aos empobrecidos acontece por meio de calúnias, humilhações e, muitas vezes, com o veredicto da justiça. Mais de 6 milhões de indígenas e outros 6 milhões de negros já foram os Nabots no Brasil. Com a cumplicidade da classe dominante e a omissão de muitos, mais de 30 mil jovens estão sendo exterminados no Brasil anualmente, na guerra química, não declarada, das drogas.
Mas a opressão dos pobres e o sangue dos mártires suscitam profetas. O profeta Elias, ao ouvir que o rei Acab estava invadindo o pequeno sítio de Nabot, após o ter matado, em alto e bom som, profetizou: “Você matou, e ainda por cima está roubando? Por isso, assim diz Javé (Deus solidário e libertador): No mesmo lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabot, lamberão também o seu. Farei cair sobre você a desgraça” (I Rs 21,19.21). Acab desencadeou uma grande perseguição ao profeta Elias, que fugiu, mas refez sua experiência do Deus da vida e continuou lutando ao descobrir que não estava sozinho na luta. Outros sete mil profetas conspiravam com ele e ao lado dele. Elias inspirou Eliseu, que inspirou Jesus de Nazaré, que inspira milhões de pessoas cristãs pelo mundo afora. Acab teve morte sofrida, parecida com a do ditador Garrastazu Médici no Brasil.
O profeta Eliseu recebeu a herança profética do profeta Elias e seguiu sua missão combinando solidariedade com denúncias das violências. Maria, mãe de Jesus e nossa mãe, também foi exemplar ao combinar fraternidade, contemplação e profecia, o que está muito bem apresentando no livro de frei Carlos Mesters, “Maria, a mãe de Jesus”, da Editora Vozes, 1977.
Maria vivenciou a profecia combinando numa perfeita harmonia a solidariedade com o povo, a ternura, o cuidado, o amor a Jesus e a todo o povo e tendo a coragem de não arredar o pé da luta ao lado de seu filho Jesus Cristo permanecendo fiel e o acompanhando até a cruz junto com algumas outras mulheres e continuando a caminhada ao lado das primeiras pessoas e comunidades que fizeram a experiência de que Jesus Cristo está ressuscitado e vivo em nós e no nosso meio.
As primeiras comunidades cristãs alimentadas pelo Evangelho de Lucas fizeram questão de apresentar Maria como mulher profetisa ao inserir no evangelho o Cântico de Maria, o Magnificat (Lc 1,46-55), onde se canta a utopia divina de que “Deus derruba do trono os poderosos e eleva os humildes, aos famintos enche de bens e despede os ricos de mãos vazias” (Lc 1,52-53).
Enfim, com os profetas Elias e Eliseu, com nossa mãe Maria, com Santa Teresa d’Ávila, São João da Cruz, Santa Terezinha, São Tito Brandsma e toda as pessoas que integram a Família Carmelitana, no passado e no presente, sigamos rumo ao Carmelo nos dedicando com muito amor à vivência do carisma carmelitano que nos pede uma harmonia entre Fraternidade, Contemplação e Profecia.
Que a nossa caminhada carmelitana continue iluminada e inspirada com zelo profético, como peregrinos/as de esperança, desejosos/as de transformar realidades para que o Reino de Deus se concretize a partir do aqui e do agora.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e artigos. E-mail: Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar. – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – Canal no you tube: https://www.youtube.com/@freigilvander – No instagram: @gilvanderluismoreira - Facebook: Gilvander Moreira III




