Congresso da Família Carmelitana do Brasil. 02-3 de agosto-2025 em Aparecida, São Paulo.

AS DEZ FONTES DA ESPERANÇA-Carmelitas Peregrinos da esperança: Um Olhar para a Regra do Carmo sob a ótica Bíblica.
Frei Carlos Mesters, O. Carm
As dez fontes da esperança que sempre renascem para o povo de Deus poder sair da escuridão e reencontrar a luz de Deus na vida
A ORAÇÃO, A FRATERNIDADE E A PROFECIA ALIMENTAM NOSSA VIDA E NOSSA MISSÃO
- O ponto de partida: Carmelitas Peregrinos da esperança.
- Os primeiros 40 anos: de Alberto a Inocêncio, de 1207 a 1247
- Os Dez passos da recuperação da esperança
- Descobrir a luz que existe dentro da escuridão do cativeiro
- A nova leitura da natureza abre os olhos do povo
- Redescobrir e experimentar o Amor eterno de Deus
- A nova imagem de Deus: Deus da família
- A nova luz no coração e nos olhos gera uma nova leitura do passado
- Deus liberta, salva e conduz o seu povo com um poder criador
- Os Dois Livros de Deus: Natureza e Bíblia
- A nova Missão do Povo de Deus: servir e ajudar, socorrer e salvar
- Uma nova Pastoral: ternura e diálogo, reunião e consciência crítica
- Uma nova celebração da vida: a lição dos Salmos
* Documento Básico da Família Carmelitana
- O ponto de partida: Carmelitas Peregrinos da esperança.
A família Carmelitana nasceu no Monte Carmelo. Os primeiros carmelitas eram peregrinos. Tinham vindo da Europa para a Terra de Jesus. Um peregrino não vive parado. Ele sabe o que quer e para onde ele vai. Ele anda e procura, porque não está satisfeito com a situação presente, e busca um objetivo para além do presente. A motivação da peregrinação dos carmelitas é a certeza de que existe uma luz, não só no fim do túnel, mas dentro do túnel, dentro da vida, não só depois. O peregrino sente dentro de si algo que vem da raiz da vida humana: “Tu nos fizeste para Ti, e nosso coração está irrequieto até que não descanse em Ti”. Existe luz dentro do túnel, dentro da vida. É esta esperança que anima o peregrino, anima os carmelitas. Somos peregrinos da esperança, e esta esperança não decepciona:
A luz que nos orienta nesta nossa caminhada para Deus é o texto escrito pelos primeiros carmelitas lá no Monte Carmelo, no qual descrevem a maneira como eles procuravam viver a vida em obséquio de Jesus Cristo. Eles queriam ter a aprovação da igreja para poder levar esta vida que eles estavam levando lá no Monte Carmelo. Alberto, o patriarca de Jerusalém, superior da igreja na Terra Santa, leu o texto da vida dos Carmelitas. Gostou e o aprovou; colocou nele a sua assinatura como sendo da sua autoria. Isto foi no ano 1207. No ano 1238, diante da ameaça do avanço dos muçulmanos na Terra Santa, os carmelitas foram morar na Europa. A aprovação oficial da Regra da parte da autoridade da igreja veio 40 anos depois no dia 1 de outubro de 1247 pelo Papa Inocêncio IV. A aprovação da Igreja animou muito aos carmelitas e os confirmou na sua caminhada.
- Os primeiros 40 anos, desde a concepção até o nascimento
- O ano de 1207: Alberto escreve a “Forma de Vida”
- O ano de 1226: Honório III diz: “É Forma de Vida válida para todos!”
- O ano de 1229: Gregório IX diz: “Vocês não podem ter propriedades!”
- O ano de 1238: o retorno dos carmelitas para a Europa
- O ano de 1246: o Papa Inocêncio IV diz: "Bispos! Aceitem os carmelitas!”
- O ano de 1246: realização do primeiro Capítulo Geral da Ordem
- O ano de 1247: Aprovação definitiva da Regra do Carmo pelo Papa Inocêncio IV
- Os 10 passos de recuperar a esperança: a luz que veio do cativeiro
No mês de agosto do ano 587 antes de Cristo, Nabucodonosor, rei da Babilônia entrou na terra do Povo de Deus, esmagou a última resistência, destruiu a cidade de Jerusalém e o Templo de Deus, matou muita gente e levou muitas pessoas para o cativeiro. Destruiu tudo que tinha sido sinal da presença viva de Deus no meio do povo: o Templo, a Monarquia, o culto, os sacerdotes e entregou a terra a outros. O povo que sobrou já não passava de um grupo étnico, sem autonomia, sem poder, sem rumo, sem templo, sem anúncio para anunciar. E muitos diziam: “Javé me abandonou, o Senhor se esqueceu de mim!” (Is 49,14). Foi a total escuridão da fé, era a noite escura da esperança. Mas sobrou a pergunta: “Deus, onde estás?”
Vamos ver de perto como, naquele terrível cativeiro da Babilônia (587-538), renasceu a fé e reapareceu um novo caminho de esperança. Vamos ver dez pontos que marcaram a caminhada do renascimento do povo de Deus. Não se trata de uma sequência cronológica, mas sim de dez aspectos da nova esperança que nasceu. Eles são o Decálogo da Esperança.
São dez passos para nós Carmelitas reanimarmos a nossa fé no Deus presente no meio de nós, renovar nossa esperança nas promessas dos profetas, e assumir nosso compromisso com o amor-doação para continuar a viver em obséquio de Jesus Cristo, animados e orientados pela Regra e pela luz que nos vem das três estrelas que brilham no céu do Carmelo: Elias, o profeta do zelo pela causa do Senhor (1Rs 19,10); Maria, a mãe de Jesus, que ouve a Palavra e a coloca em prática (Lc 11,27-28) e Eliseu, o herdeiro sucessor que transmite e irradia para todos a experiência do Deus de Elias (cf. 2Rs 2,14-15)).
- Os dez passos para sair da escuridão e reencontrar a luz da esperança
- Descobrir a luz que existe dentro da escuridão do cativeiro
Todos nós, em momentos difíceis de escuridão, costumamos dizer: “Existe luz no fim do túnel”. Este modo de falar supõe que dentro do túnel não existe luz. No túnel só existe escuridão. Na época do cativeiro, porém, a luz que reanimou a esperança do povo não foi a luz no fim do túnel, mas sim a luz dentro da escuridão do túnel. Foi a redescoberta da fé que nos diz: “Deus está conosco”, Ele está no meio de nós! É a certeza que está expressa no próprio nome de Deus: Yahweh, hwhy, Javé, Emanuel, Deus conosco.
Um exemplo significativo desta redescoberta da luz na escuridão transparece neste trecho da 3ª Lamentação, na qual Deus aparece como o autor dos males que o povo estava sofrendo no cativeiro. Diz o autor desta terceira lamentação
“(Ele, Deus),
12 Disparou seu arco, e fez de mim o alvo de suas flechas.
13 Em meus rins ele cravou suas flechas, tiradas de sua aljava.
14 Eu me tornei uma piada para todos os povos, a gozação de todo o dia.
15 Encheu meu estômago de amargura, embriagou-me de fel.
16 Fez-me dar com os dentes numa pedra, estendeu-me na poeira.
17 Fugiu a paz do meu espírito, a felicidade acabou.
18 Eu digo: "Acabaram minhas forças e minha esperança em Yahweh (Javé)".
19 Lembra-te de minha miséria e sofrimento, o fel que me envenena.
20 Guardo triste essa lembrança e me sinto abatido.
21 Mas existe alguma coisa que eu lembro e me dá esperança:
22 o amor de Javé não acaba jamais e sua compaixão não tem fim.
23 Pelo contrário, renovam-se a cada manhã: "Como é grande a tua fidelidade!"
24 Digo a mim mesmo: "Javé é minha herança", por isso nele espero.
25 Javé é bom para os que nele esperam e o procuram.
26 É bom esperar em silêncio a salvação de Javé.
A quase casual lembrança do Nome Yhwh (Lm 3,18) abriu a porta da memória e o autor começou a lembrar o passado vivido com Yhwh. A palavra-chave é recordar, lembrar. Re-cordar significa fazer passar tudo de novo pelo coração. O autor do lamento não foge do confronto com o seu passado. A dor, causada pela destruição de Jerusalém e pela desintegração do povo, tem algo a lhe dizer. Sem medo, ele começa a recordar, a mexer na ferida, pois lá no mais fundo da memória do coração, existe algo "que me faz ter esperança!" (Lm 3,20). Por isso ele aguenta, sem desfalecer.
O nome Yhwh é o fundamento desta teimosia. Algo começa a renascer, a borbulhar do pântano da dor. O nome de Deus, vindo de fora e entrando no ouvido, fez acordar dentro dele a saudade de Deus que existe na raiz do coração humano: “Tu nos fizeste para Ti, e o nosso coração estará irrequieto até que não descanse em Ti!” (Confissões de S. Agostinho 1,1)
Veja estes textos de Isaías que deixam transparecer algo desta luz dentro das trevas do cativeiro. É a escuridão luminosa da noite escura da fé: Is 42,16; 49,6; 51,4-5; 53,11; 58,8-10; 60,19.
- A nova leitura da natureza abre os olhos do povo
Naquele desespero generalizado do cativeiro sem luz, o profeta Jeremias soube reencontrar este outro motivo de esperança. Eis o que ele dizia ao povo exilado:
“Assim diz Yhwh , aquele que estabelece o sol para iluminar o dia e ordena à lua e às estrelas para iluminarem a noite, aquele cujo nome é Yhwh dos exércitos: quando essas leis falharem diante de mim - oráculo de Yhwh - então o povo de Israel também deixará de ser diante de mim uma nação para sempre!” (Jr 31,35-36). “Se vocês puderem romper a minha aliança com o dia e com a noite, de modo que já não haverá mais dia nem noite no tempo certo, também será rompida a minha aliança com o meu servo Davi” (Jr33,20-21).
É como se Jeremias dissesse ao povo: Vocês dizem que Deus já não cuida de nós, e que nós deixamos de ser povo de Deus! Eu digo para vocês que Ele não nos abandonou. E sabem por quê? É que o sol vai nascer amanhã. Nabucodonosor pode ser forte, mas ele não consegue impedir o nascimento do sol amanhã cedo.
Jeremias ajudou o povo a ler a natureza com um novo olhar de fé. Era nos fenômenos da natureza que ele via um sinal da presença amiga de Deus e da sua fidelidade para com o povo: na sequência inalterada dos dias e das noites; no sol que se levantava todos os dias sobre a cidade destruída; na lua minguante e crescente; na alternância das estações do ano: primavera, verão, outono e inverno; nas chuvas, nas plantas e sementes, etc.
Tudo isto era para Jeremias um sinal da certeza de que Deus continuava fiel ao seu povo. Ele não havia rompido sua aliança, como alguns andavam dizendo (cf. Is 49,14). A dinâmica inalterada da natureza tornou-se o sinal mais seguro da presença amiga de Deus no meio do seu povo.
- Redescobrir e experimentar o Amor eterno de Deus
Foi nesta mesma situação escura sem horizonte, que os profetas desenterraram a raiz do amor fiel de Deus. Jeremias traz estas palavras de Deus. Ele diz: “De longe Yhwh me apareceu: Eu te amei com um amor eterno, por isso conservei para ti o amor” (Jr 31,3). E esta outra afirmação de Isaías: “Em um momento de cólera escondi de ti o meu rosto, mas logo me compadeci de ti, levado por um amor eterno, diz Yhwh, o teu redentor” (Is 54,8; cf. Is 41,8-14.). Foram os profetas, sobretudo Jeremias, Oséias e Isaías, que souberam redescobrir esta dimensão infinita do amor gratuito de Deus (cf. Is 41,8-14; 49,15;Jr 31,31-37; Os 2,16).
Nas entrelinhas destas frases, a gente adivinha a seguinte descoberta. É como se Deus, o namorado, dissesse ao povo, sua namorada: Depois de tudo que você fez, você já não mereceria ser amada. Mas meu amor por você não depende do que você fez por mim ou contra mim. Quando comecei a amar você, eu o fiz com um amor eterno. Por isso, apesar de tudo que você me fez, apesar de todos os seus defeitos, eu gosto de você, eu amo você para sempre! Mesmo você me matando, eu amo você. Jesus deu a prova deste amor eterno quando pediu que Deus perdoasse o soldado que o estava matando na cruz (Lc 23,34).
A redescoberta da certeza do amor de Deus devolveu ao povo a autoestima, ajudou-o a superar o sentimento de culpa e levou-o a dar uma resposta de amor na observância dos Dez Mandamentos. Agora eles sabem que nada, nem mesmo o fracasso, pode separá-los do amor eterno de Deus (Is 40,1-2ª; 41,9-10.13-14; 43,1-5; 44,2; 46,3-4; 49,13-16; 54,7-8; etc. cf. Rm 8,35-39).
- A nova imagem de Deus: Deus de família
Para os que estavam no cativeiro nada sobrou da monarquia, nem da organização como povo organizou que vive na sua terra. O que sobrou para eles e que os unia entre si eram os laços familiares: pai, mãe, irmãos, irmãs. Nada mais.
Ora, foi neste pequeno espaço que lhes sobrava da “casa”, da família, da pequena comunidade, que renasceu neles a experiência de Deus. A imagem de Deus, transmitida pelos discípulos de Isaías, reflete este ambiente familiar da Casa. Deus é Pai (Is 63,16; 64,7), é Mãe (Is 46,3; 49,15-16; 66,12-13), é Marido (Is 54,4-5; 62,5), é o parente próximo (irmão mais velho) (Is 41,14; 43,1).
* Deus é Pai: “Tu és o nosso pai, pois Abraão não nos reconhece mais e Israel não se lembra de nós. Yhwh, tu és o nosso pai. Teu nome é, desde sempre, Nosso Redentor” (Is 63,16). “Yhwh, tu és o nosso pai; nós somos o barro, e tu és o nosso oleiro; todos nós somos obra de tuas mãos” (Is 64,7).
* Deus é Mãe: “14Sião dizia: "Yhwh me abandonou; o Senhor se esqueceu de mim." 15Por acaso pode a mãe se esquecer da sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem eu não me esqueceria de ti. 16Eis que te gravei nas palmas da minha mão, os teus muros estão continuamente diante de mim” (Is 49,14-16). ”Como a uma pessoa que a sua mãe consola, assim eu vos consolarei; sim, em Jerusalém sereis consolado” (Is 66,13).
* Deus é Marido: “Porque o teu marido será o teu criador, Yhwh dos Exércitos é o seu nome. O Santo de Israel é o teu redentor, ele se chama o Deus de toda a terra. 6Como a uma esposa abandonada e acabrunhada, Yhwh te chamou; como à mulher da sua mocidade, que teria sido repudiada, diz o teu Deus. 7Por um pouco de tempo te abandonei, mas agora com grande compaixão torno a recolher-te. 8Em um momento de cólera escondi de ti o meu rosto, mas logo me compadeci de ti, levado por um amor eterno, diz Yhwh , o teu redentor” (Is 54,5-8). “Como um jovem desposa uma virgem, assim te desposará o teu edificador. Como a alegria do noivo pela sua noiva, tal será a alegria que o teu Deus sentirá em ti” (Is 62,5).
* Deus é Irmão mais velho (Redentor): “16Com efeito, tu és o nosso pai. Ainda que Abraão não nos conhecesse e Israel não tomasse conhecimento de nós, tu, Yhwh, és nosso pai, nosso redentor: tal é o teu nome desde a antiguidade” (Is 63,16). “8Em um momento de cólera escondi de ti o meu rosto, mas logo me compadeci de ti, levado por um amor eterno, diz Yhwh, o teu redentor” (Is 54,8).
Yhwh, o Deus que antes estava ligado ao Templo, ao culto oficial, ao sacerdócio, ao clero, à monarquia, agora está perto deles, “em casa”; casa pequena, quebrada e, humanamente falando, sem futuro, mas Casa, e não Templo. Eles não retomaram as antigas imagens religiosas, mas usaram imagens novas tiradas da vida familiar e comunitária que eles estavam vivendo lá no cativeiro. Humanizaram a imagem de Deus e começaram a olhar a família, a pequena comunidade, como o espaço do reencontro com Deus. Deus agora se esconde e se revela (cf. Is 45,15) lá onde antes ninguém o procurava: em casa, no relacionamento familiar, nas pequenas comunidades de base, no meio do povo exilado e excluído!
Esta é também a renovação que acontece hoje entre nós a partir das Comunidades Eclesiais de Base. Foi a partir deste mundo pequeno e limitado da “casa”, sem prestígio e sem poder, que tudo renasceu e continua renascendo, até hoje. Foi assim que os primeiros cristãos recomeçaram, reorganizando-se em pequenas comunidades de várias famílias (cf. Ex 12,4).
- A nova luz nos olhos gera uma nova leitura do passado
A nova maneira de olhar a natureza, a redescoberta do amor eterno e o reencontro com Deus na "casa", na família, deram olhos novos para entender, de maneira nova, tudo aquilo que Deus tinha feito com eles no passado.
Eles começaram a reler os valores da vida que no passado haviam orientado o povo. Mantinham as mesmas palavras, mas davam a elas um novo sentido e as colocavam numa nova perspectiva. Eis alguns exemplos:
* O povo de Deus já não é uma raça: agora os estrangeiros também fazem parte (Is 56,3.6-7).
* O templo já não é só para os judeus: agora é casa de oração para todos os povos (Is 56,7).
* O culto é universal: os estrangeiros também participam (Is 56,6-7).
* O sacerdócio não é só de Levi: estrangeiros vão receber o mesmo sacerdócio (Is 66,20-21).
* O reino já não é a monarquia de Davi, mas sim o Reino do próprio Deus (Is 52,7; 43,15).
* O messias, (o ungido) não é só o rei Davi, mas também Ciro, o Rei dos persas (Is 45,1; 44,28).
* A eleição não é um privilégio, mas um serviço a ser prestado a toda a humanidade (Is 42,1-4).
* A missão não é o povo ser um grupo separado, mas sim ser a “Luz das Nações” (Is 42,6; 49,6)
* A lei de Deus não é só de Israel: todos os povos nela encontram uma luz (Is 2,1-5).
* Jerusalém não é a capital de Judá: é centro de peregrinação para todos os povos (Is 60,1-7).
Começaram a reler tudo: a natureza, a história, a política, a criação, o passado e o presente e assim reintegravam a vida desintegrada do povo exilado. Foi um longo processo de séculos. A síntese final desta releitura, iniciada no cativeiro, é a própria Bíblia, é o Antigo Testamento.
- Deus liberta, salva e conduz o seu povo com um poder criador
De todos os livros da Bíblia, os capítulos 40 a 66 do livro de Isaías são os que mais usam a palavra criar, mais de vinte vezes! O verbo criar (arb, BARÁ) indica a qualidade da ação com que Deus acompanha e cuida do seu povo. Deus cria o universo e a terra; cria também o povo e o Êxodo (Is 43,15). Tudo é fruto da ação criadora de Deus. “Yhwh que te criou, é o mesmo que estendeu os céus e fundou a terra” (Is 51,13). Ele liberta, salva e conduz o povo com um poder criador (Is 40,25-31).
Ação salvadora e ação criadora se identificam. O Deus que chama Abraão é o Deus Criador. O Deus que cria o mundo é o Deus que chama Abraão. Iluminação mútua entre Criação e Salvação! É a mesma ação. Ao lado das Dez Palavras (Dez Mandamentos) que estão na origem da Aliança, eles começam a dar atenção às Dez Palavras que estão na origem das Criaturas. Ao lado da Lei da Aliança, descobrem a Lei da Criação.
A Lei de Deus entregue ao povo no Monte Sinai tinha no seu centro as Dez Palavras divinas da aliança, os Dez Mandamentos (Ex 20,1-17; Dt 5,6-22). Da mesma maneira, a narrativa da Criação tem no seu centro Dez Palavras divinas. O autor que fez a redação da narrativa da Criação (Gn 1,1-2,4ª) repete dez vezes a expressão “e Deus disse”. Como fez para o povo, assim Deus faz para as criaturas: “fixou-lhes uma lei que jamais passará” (Sl 148,6):
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1. Gn 1,3 E Deus disse: haja luz 2. Gn 1,6 E Deus disse: haja um firmamento 3. Gn 1,9 E Deus disse: que as águas se juntem e apareça o continente 4. Gn 1,11 E Deus disse: que a terra produza relva verde 5. Gn 1,14 E Deus disse: que haja luzeiros no firmamento 6. Gn 1,20 E Deus disse: que as águas fiquem cheias de seres vivos 7. Gn 1,24 E Deus disse: que a terra produza seres vivos 8. Gn 1,26 E Deus disse: façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança 9. Gn 1,28 E Deus disse: sejam fecundos 10. Gn 1,29 E Deus disse: dou as ervas como alimento. |
E Deus Disse
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Esta maneira de descrever a ação criadora de Deus é bem mais que um jogo de palavras. As Dez Palavras da Criação são a expressão da nova leitura da natureza. A admirável harmonia do universo é fruto da obediência das criaturas às Dez Palavras com que Deus enfrentou e venceu o caos.
O caos do cativeiro surgiu porque o povo não tinha observado as Dez Palavras da Lei da Aliança. As criaturas, ao contrário do povo, sempre observam a Lei da Criação. Por isso existe a harmonia na natureza. No Pai-Nosso Jesus dirá: “Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”. Jesus pede que cheguemos a observar a Lei da Aliança com a mesma perfeição com que o sol e as estrelas do céu observam a Lei da Criação. Na harmonia do universo as Comunidades descobrem como realizar sua missão. O Decálogo da Criação descreve a ação amorosa de Deus em nosso favor, o Decálogo da Aliança descreve como deve ser a resposta amorosa do ser humano a Deus.
- Os Dois Livros de Deus: Natureza e Bíblia
1º LIVRO: a natureza
O primeiro livro de Deus não é a Bíblia, mas sim a natureza, o universo, a vida, o mundo, os fatos, a história. É através do Livro da Natureza ou da Vida que Deus quer falar conosco. Deus criou as coisas falando. Ele disse: “Luz!” E a Luz começou a exisitir (Gn 1,3). Tudo que existe é a expressão de uma palavra divina, como tão bem verbaliza o salmo:
O céu manifesta a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos.
O dia passa a mensagem para outro dia, a noite a sussurra para a outra noite.
Sem fala e sem palavras, sem que a sua voz seja ouvida,
a toda a terra chega o seu eco, aos confins do mundo a sua linguagem (Sl 19,2-5).
Cada ser humano é uma palavra ambulante de Deus (Gn 1,27). As crianças são palavra de Deus para os pais; os pais são palavra de Deus para as crianças. Mas nós já não nos damos conta de que estamos vivendo no meio do livro de Deus e que cada um de nós é uma página viva deste livro divino. Há algo que nos impede de reconhecer a presença da Palavra na vida, algo que “sufoca a verdade” (Rom 1,18; cf Is 44,20; Sl 36,3). O que é que nos impede?
Santo Agostinho diz que foi o pecado, isto é, esta nossa mania de querer dominar tudo, de tratar a natureza como mercadoria e de achar que somos donos de tudo. Este é o nosso pecado que “sufoca a verdade”. Por isso, as letras do Primeiro Livro de Deus se atrapalharam, e já não conseguimos descobrir a fala de Deus no Livro da Vida. Perdemos o olhar da contemplação, a capacidade de admirar. Para remediar este nosso mal nasceu a Bíblia, o Segundo Livro de Deus.
2º LIVRO: a Bíblia
A Bíblia foi escrita, não para substituir o Livro da Vida, mas para ajudar-nos a entendê-lo melhor e a descobrir nele os sinais da presença de Deus. A leitura orante da bíblia nos devolve o olhar da contemplação, ajuda a decifrar o mundo e faz com que o Universo torne-se novamente uma revelação de Deus, volte a ser o que deve ser “O Primeiro Livro de Deus”.
A bíblia é o fruto da ação do Espírito de Deus e de um demorado processo de busca do ser humano. Impelido pelo desejo de encontrar Deus nas crises e depressões da vida, o povo foi descobrindo os sinais da presença divina e, dentro dos critérios da cultura da época, transmitia para os filhos as suas descobertas. Assim foi nascendo a Tradição Viva do Povo de Deus, transmitida oralmente de geração em geração, desde os tempos de Abraão e Sara.
Foi na comunidade do cativeiro, a partir da redescoberta do amor de Deus, que começou a ser articulada a redação final desta tradição oral do povo de Deus que é a Bíblia. A Bíblia é o resultado da leitura que o povo hebreu conseguiu fazer da vida e da natureza para descobrir nelas a fala amorosa de Deus. Este Segundo Livro de Deus ajudou o povo a entender melhor o Primeiro Livro de Deus.
Aqui vale a pena retomar uma palavra de Clemente de Alexandria, um sábio africano do século IV. Ele dizia: “Deus salvou os judeus judaicamente, os gregos, gregamente, os bárbaros, barbaramente”. E nós podemos continuar: “Salva os brasileiros, brasileiramente". Os judeus, os gregos e os bárbaros, cada um no seu tempo e na sua cultura, no meio das crises, foram capazes de descobrir os sinais da presença de Deus em suas vidas. Assim também nós estamos sendo desafiados a fazer hoje o mesmo que eles fizeram: com a ajuda da Bíblia descobrir a presença divina dentro da nossa realidade; criar maneiras novas de celebrar que respondam ao desejo mais profundo do coração humano; irradiar esta fé para os outros como uma grande Boa Nova de Deus para a vida humana.
- A nova Missão do Povo de Deus: servir, ajudar, socorrer, salvar
Foi no ambiente do cativeiro da Babilônia, que o povo redescobriu sua missão como Povo de Deus: não mais para ser um povo glorioso, colocado acima dos outros povos, mas para ser um povo servo, Servo Sofredor, cuja missão é revelar o amor de Deus, irradiar a bondade de Deus, difundir a justiça, não desanimar nunca e, assim, ser a "Luz das Nações" (Is 42,6; 49,6). Os quatro cânticos do Servo de Yhwh falam desta missão (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12). Na figura do Servo eles apresentam ao povo exilado um modelo de como ele deve entender e realizar a sua missão como Povo de Deus.
A figura do Servo de Yhwh não é um indivíduo determinado, mas é o próprio povo. É o povo do cativeiro, descrito no quarto cântico como um povo oprimido, sofredor, desfigurado, sem aparência de gente e sem um mínimo de condição humana, povo explorado, maltratado e silenciado, sem graça nem beleza, cheio de sofrimento, evitado pelos outros como um leproso, condenado como criminoso, sem julgamento nem defesa (Is 53,2-8). Retrato perfeito da metade da humanidade de hoje!
Os quatro cânticos do Servo de Deus são uma cartilha para ajudar o povo, tanto de ontem como de hoje, a descobrir e a assumir a sua missão. Descrevem os quatro passos que o Servo deve percorrer para realizar a sua missão: O primeiro cântico (Is 42,1-9) descreve como Deus escolhe e apresenta o povo oprimido para ser o seu Servo. O segundo (Is 49,1-6) mostra como este povo, ainda sem fé em si mesmo, vai descobrindo com dificuldade a sua missão. O terceiro (Is 50,4-9) relata como o povo assume a sua missão e a executa apesar da perseguição. E o quarto cântico (Is 52,13 a 53,12) é uma profecia a respeito do futuro do Servo e da sua missão: ele vai ser morto, mas a sua morte será fonte de salvação para todos.
No fim, um breve resumo dos quatro cânticos define a missão do Servo (Is 61,1-2). Foi este resumo que Jesus escolheu para apresentar-se com a sua missão na comunidade de Nazaré (Lc 4,18). Jesus é o primeiro que percorreu os quatro passos, do começo até o fim. Por isso, ele se tornou a chave principal para que possamos entender todo o significado e alcance da missão do Servo, descrita no livro de Isaías.
Em Jesus, a profecia do Servo de Deus retomou forma e vigor. Ele disse: “Eu não vim para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos” (Mt 20,28). Aprendeu de sua Mãe que disse: "Eis aqui a serva do Senhor!" (Lc 1,38). Ela o aprendeu da tradição dos Anawim, para os quais o povo de Deus está no mundo não para dominar, mas para servir. Eles esperavam o Messias Servidor. Foi assim que o entenderam os primeiros cristãos. Jesus era visto por eles como o Servo de Deus (cf. At 3,13.26; 4,27.30). Ser servo de Deus era o título com que eles se identificavam a si mesmos (Rm 1,1): “servos da justiça” (Rm 6,18), “servos de Deus” (Rm 6,22).
- Uma nova Pastoral: ternura, diálogo, reunião e consciência crítica
A gratuidade da presença de Deus no meio de nós torna-se a fonte de uma nova pastoral que transparece nas linhas e entrelinhas dos capítulos 40 a 66 do livro de Isaías. Eis alguns aspectos desta pastoral:
* Ternura
Para uma pessoa que vive machucada e triste na solidão do cativeiro, não basta você gritar para que ela levante a cabeça e tenha esperança; não basta usar os argumentos da análise crítica da realidade para que ela comece a enxergar a situação com esperança renovada. É necessário, antes de tudo, cuidar das feridas do coração, acolhê-la com muita ternura. De fato, as primeiras palavras do livro dos discípulos de Isaías são: “Consolem, consolem o meu povo!” (Is 40,1). E elas ressoam pelas páginas do livro inteiro, do começo ao fim.
Os discípulos têm uma conversa atenciosa, cheia de ternura e consolo, de encorajamento e acolhimento. “Não gritam nem apagam a vela que ainda solta um pouco de fumaça” (Is 42,2-3). Eles mesmos machucados, não machucam; oprimidos, não oprimem, mas tratam e acolhem o povo com muito respeito. Tentam chamar as pessoas pelo próprio nome (Is 43,1). Usam linguagem simples, concreta e direta, numa atitude de ternura nunca vista antes, que funciona como bálsamo, e dispõe as pessoas para olhar a realidade com mais objetividade. Há muitas expressões e imagens de ternura espalhadas pelos capítulos 40 a 66 de Isaías: Is 40,1-2ª; 43,1-5; 44,2; 46,3-4; 49,13-16; etc. Eis um exemplo: “Tu és o meu servo! Eu te escolhi, não te rejeitei. Não temas, porque eu estou contigo. Não fique apavorado, pois eu sou o teu Deus. Eu te fortaleço, sim, eu te ajudo, eu te sustento com a minha direita justiceira! ... Não temas! Sou eu que te ajudo! Não temas, vermezinho de Jacó, meu bichinho de Israel! Eu mesmo te ajudarei. Oráculo de Yhwh, teu redentor é o Santo de Israel!”(Is 41,9-10.13-14; cf Is 54,7-8).
* Diálogo
Nos capítulos 40 a 66 de Isaías, do começo ao fim, transparece uma atitude de escuta e diálogo. Eles conversam, fazem perguntas, questionam, criticam, levam o povo a refletir sobre os fatos (cf. Is 40,12-14.21.25-27; etc.). Ensinam dialogando em pé de igualdade com o povo. Este jeito de ensinar é próprio de quem se considera discípulo e não dono da verdade: “O Senhor me deu uma língua de discípulo para que eu saiba trazer ao cansado uma palavra de conforto. De manhã em manhã ele me desperta, sim, desperta meu ouvido, para que eu ouça como os discípulos” (Is 50,4)
Um discípulo não absolutiza seu próprio pensamento, nem impõe suas ideias, mas sabe ensinar escutando, aprendendo dos outros. Eis um exemplo de como faziam: “Por que dizes tu, Jacó, e por que afirmas tu, Israel: “O meu caminho está oculto a Yhwh ; meu direito passa despercebido a Deus?” Então não sabes? Por acaso não ouviste isto? Yhwh é um Deus eterno, criador das regiões mais remotas da terra. Ele não se cansa nem se fatiga, sua inteligência é insondável” (Is 40,27-28)
Por este seu jeito de conviver e de tratar com o povo, os discípulos não só falam sobre Deus, mas também o revelam. Eles comunicam algo daquilo que eles mesmos vivem. Deus se faz presente nesta atitude de ternura e de diálogo. O povo se dá conta de que o Deus dos discípulos é diferente do deus da Babilônia, diferente também da imagem de Deus que eles ainda carregavam na memória, da época da monarquia, de antes da destruição do Templo. Assim, aos poucos, os olhos se abrem. O povo começa a perceber algo do novo que estava acontecendo. “Não estão vendo?”(Is 43,19)
Até hoje, estes primeiros passos são o mais difíceis, os mais lentos e os mais importantes. Foi necessária muita paciência da parte dos discípulos, para que aquele povo exilado no cativeiro se reanimasse a crer novamente em si mesmo e em Deus, e se levantasse (Is 49,4.14).
* Reunião
É neste mesmo período do cativeiro que eles começaram a insistir de novo na observância da lei já antiga do sábado (Is 56,2.4; 58,13-14; 66,23; cf. Gen 2,2-3). Era para que o povo tivesse ao menos um dia por semana para se encontrar, partilhar sua fé, louvar a Deus e animar-se uns aos outros. Faziam reunião de noite e perguntavam: “Elevai os olhos para o alto e vede: Quem criou estes astros? É ele que faz sair o seu exército em número certo e fixo; a todos chama pelo nome. Tal é o seu vigor, tão grande a sua força que nenhum deles deixa de apresentar-se. Por que dizes tu, Jacó, e por que afirmas, Israel: "O meu caminho está oculto a Yhwh; o meu direito passa despercebido a Deus?" (Is 40,26-27)
Nestas reuniões eles refrescavam a memória (Is 43,26; 46,9), contavam as histórias de Noé, de Abraão e Sara, da Criação, lembravam o êxodo (Is 43,16-17), apontavam os fatos da política e perguntavam: “Quem é que faz tudo isto?" (Is 41,2). A resposta era sempre a mesma: "É Yhwh, o Deus do povo, o nosso Deus!". Assim, a natureza deixava de ser o santuário dos falsos deuses; a história já não era mais decidida pelos opressores do povo; o mundo da política já não era mais o domínio de Nabucodonosor. Por trás de tudo começam a reaparecer os traços do rosto de Yhwh, o Deus do povo. A natureza, a história e a política deixam de ser estranhas e hostis ao povo e tornam-se aliadas dos pobres na sua caminhada como Servo de Deus.
* Consciência crítica
Foi necessária muita paciência para que o povo se reanimasse a crer novamente em si mesmo e em Deus (Is 49,4.14). O desânimo era muito grande. Eles eram como o profeta Elias deitado debaixo da árvore querendo morrer: “Basta, Senhor! Tira-me a vida, porque não sou melhor que meus pais” (1Rs 19,4). Até para cantar eles tinham perdido o gosto (Sl 137,1-6). Este desânimo tinha duas causas, ligadas entre si como os dois braços de uma balança: uma externa que, de fora, pesava sobre eles, a saber: a destruição de Jerusalém, o exílio, a perda de todos os apoios e direitos; a outra interna que, por dentro, esvaziava o coração: a falta de visão e de fé, o peso morto da antiga visão de Deus. Deus parecia ter perdido o controle da situação. Nabucodonosor parecia ser o dono de tudo. Desequilibrou-se a balança da vida!
Os discípulos de Isaías atacavam as duas causas: desfaziam o peso da opressão e enchiam o vazio do coração. Para desfazer o peso da opressão eles usavam o bom senso e faziam uma análise crítica da realidade. Desmascaravam o poder que os oprimia e a ideologia dominante que os enganava. Tudo era analisado e criticado com ironia e precisão, e confrontado com a nova visão que a fé em Deus lhes comunicava. Eles diziam ao povo: “Vejam: as nações [que nos oprimem] são como gotas num balde, e não valem mais que poeira num prato da balança. Vejam: as ilhas pesam como um grão de areia” (Is 40,15; cf. Is 40,17.22.23; 41,6-7.21-29; 44,18-20.25; 47,1-15). Para encher o vazio do coração os discípulos ajudavam o povo a ler de maneira nova o mundo que os envolvia e a perceber nele os sinais da presença amorosa de Yhwh: “Por um pouco de tempo te abandonei, mas agora com grande compaixão torno a recolher-te. Em um momento de cólera escondi de ti o meu rosto, mas logo me compadeci de ti, levado por um amor eterno, diz Yhwh, o teu redentor” (Is 54,7-8; cf. Is 55,8-11; 41,1-5; 44,27-28; 45,1-7). Assim, eles iam descobrindo que a casa preferida de Deus era no meio do seu povo oprimido e exilado. Deus fez opção pelos pobres: "Eu estou contigo!" (Is 41,10). “Troco tudo por ti!” (Is 43,4). É lá, no povo do cativeiro, que Ele, Deus, deve ser procurado (Is 55,6), e é lá que Ele quer que este povo seja "Luz das Nações” (Is 42,6).
Deste modo, enchendo o vazio do coração (causa interna) e enfraquecendo o peso da opressão (causa externa), eles deslocavam o peso da balança. O povo se equilibrava de novo na vida. Agora, já não era a perseguição que enfraquecia a fé, mas sim é a fé renovada e esclarecida que enfraquecia o poder dos poderosos. A face de Deus reaparecia na vida. O povo, reanimado por esta Boa Notícia, despertava (Is 51,9.17; 52,1), se punha de pé (Is 60,1), começou a cantar (Is 42,10; 49,13; 54,1; 61,10; 63,7) e a resistir (Is 48,20).
- Uma nova celebração da vida: a lição dos salmos
O livro dos Salmos nasceu ao longo dos séculos. Sua redação final é depois do cativeiro, em torno dos séculos V ou IV aC. Só uma parte das orações do povo está no Livro dos Salmos. A outra parte está espalhada pela Bíblia inteira, tanto no AT como no NT. Os Salmos são o lado orante da história do povo de Deus. Neles há de tudo: Lei, História, Sabedoria, Profecia. Eles revelam o olhar orante do povo sobre a Criação de Deus. Ajudam a rezar os fenômenos da natureza.
Temos que recuperar a criatividade e a capacidade de admirar. Nesse ponto, o povo da Bíblia dá lição a todos nós. Apesar de todas as suas limitações, eles souberam ler o Livro da vida. Souberam descobrir e cantar a beleza do Universo que revela o amor de Deus e a grandeza do Criador. Souberam verbalizar e transmitir suas descobertas, enriquecendo as gerações seguintes.
Quando um artista tem uma inspiração, ele procura expressá-la numa obra de arte. A arte que daí resulta carrega dentro de si essa mesma inspiração. Por isso, as obras de arte atraem e mexem tanto com as pessoas. O mesmo acontece quando lemos e meditamos a Bíblia. A inspiração que conduziu os autores ou autoras a compor os salmos, continua presente naquelas antigas orações. Através da nossa leitura atenta e orante esse mesmo Espírito entra em ação e começa a atuar para revelar em nós a mesma imagem de Deus expressa no texto. Eis alguns destes salmos:
Salmo 8: “A Tua presença irrompe por toda a terra!” Deus se revela na natureza
Salmo 19(18): “Os céus cantam a glória de Deus!” Eles são expressão da Lei de Deus
Salmo 46(45): “Deus é nosso refúgio e nossa força!” Ele está conosco! Não ter medo
Salmo 104(103): “Envia teu Espírito e tudo será criado!” A ordem da Criação vem de Deus
Salmo 136(135): “Criou o céu e a terra! Eterno é seu amor!” Tudo é revelação do amor
Salmo 139(138): “Tu me conheces quando estou sentado!” O Criador está presente em tudo
Salmo 148: “Aleluia! Louvai a Yhwh todas as criaturas!” Convite ao louvor universal
Estes Salmos nos dão uma ideia do que significava para aquele povo do cativeiro da Babilônia a fé no poder criador de Deus. Quando cantam a criação do universo e falam do Deus Criador, não é para dar informações sobre como Deus tinha criado o mundo no passado, mas sim para comunicar quem era o Deus que estava com eles lá no cativeiro, no mais fundo do fundo do poço, naquela escuridão sem luz, naquele desânimo sem futuro, e qual o poder criador que ele usava para acompanhar o seu povo! A redescoberta surpreendente da presença criadora da palavra de Deus naquela vida oprimida do cativeiro desumano, sem rumo e sem sentido, foi como a ressurreição do povo que iluminou a vida e a própria natureza! Humanizou a Vida!




