Dom Milton Kenan Júnior, Bispo diocesano de Barretos/SP.

 

            Concluindo seu “discurso” sobre a caridade, Teresa serve-se da “parábola” do pincel, para introduzir suas considerações sobre a sublime tarefa que Madre Inês de Jesus lhe confiou de acompanhar as noviças, auxiliando Madre Maria de Gonzaga, Mestra de Noviças:

            “Se uma tela pintada por um artista pudesse pensar e falar, certamente ela não se queixaria de ser cessar tocada e retocada por um pincel e tampouco invejaria a sorte desse instrumento, pois ela saberia que não é ao pincel mas ao artista que o dirige que ela deve a beleza da qual está revestida. O pincel por sua vez não poderia glorificar-se da obra-prima feita por ele, ele sabe que os artistas não se embaraçam, que eles se divertem com as dificuldades, agradam-se em escolher às vezes os instrumentos fracos e defeituosos...” (C, 20r).

            Em fevereiro de 1893 – Teresa havia somente vinte anos – Madre Inês de Jesus foi eleita Priora; a Mestra de Noviças Madre Maria dos Anjos, tornou-se Sub Priora, e Madre Maria de Gonzaga, foi nomeada ecônoma  e mestra de noviças.

            Madre Inês pediu à jovem irmã Teresa de ajudar a Madre Mestra na sua tarefa. Isso significava confiar-lhe uma missão delicada. Seria necessário muito tato e prudência, considerando o caráter tenebroso e suscetível de Madre Maria do Gonzaga. Além do mais, não havia nada de oficial nesta nomeação. Teresa tinha no Noviciado somente o título de “Anjo” de duas Irmãs conversas: Ir. Marta de Jesus, que entrara no Carmelo aos 23 de dezembro de 1887 (anterior à própria Teresa), e Ir. Maria Madalena do Santíssimo Sacramento, que entrara aos 22 de julho de 1892.

            É importante notar que Teresa durante todo o seu tempo no Carmelo ficara instalada no Noviciado, convivendo com as Noviças; pelo fato das Constituições não permitirem a mais de três irmãs de sangue participar do Capítulo Conventual. Por essa razão, Teresa que era a terceira das irmãs Martin a entrar no Carmelo de Lisieux, não tem permissão de participar do Capitulo da comunidade e, durante toda a sua vida permanece no Noviciado, permitindo assim ocupar-se com frequência das noviças.

            A função que lhe fora confiada não é nada fácil. Teresa tem que conviver com o humor inconstante de Madre Maria de Gonzaga que não permitia a Teresa fazer planos de grande alcance. Não havia, portanto, nenhuma estabilidade na nova função. A todas estas dificuldades se acrescentava a juventude de Teresa que devia aconselhar, encorajar e, quando era necessário, repreender as noviças mais velhas do que ela. Nestas condições humanamente desfavoráveis Teresa tem que exercitar a sua função, até a morte.

            Teresa, logo de início se dá conta de que a tarefa que lhe fora confiada ultrapassa suas forças. Ela reconhece não ter outro recurso senão recorrer a Jesus: “Quando me foi dado penetrar no santuário das almas, vi imediatamente que a tarefa estava acima das minhas forças, então me coloquei nos braços de Deus como uma criancinha ...”( C, 22r); “Madre, desde que compreendi que me era impossível fazer algo por mim mesma, a tarefa que vós me impusestes não me pareceu mais difícil, senti que a única coisa necessária era unir-me cada vez mais a Jesus e que ‘O resto me seria dado por acréscimo’. Com efeito nunca minha esperança foi enganada. Deus dignou-se de encher minha mãozinha todas as vezes que foi necessário que eu alimentasse a alma de minhas irmãs... Confesso-vos, Madre bem-amada, que se me tivesse apoiado o mínimo que fosse em minhas próprias forças, ter-vos-ia bem cedo entre as armas....” (C 22v).

            Teresa em contato direto com aquelas almas que deve formar para a vida religiosa e penetrar no espírito mais íntimo do Carmelo, compreende que não se trata de iluminar as inteligências, mas estimular a vontade; uma doutrina não bastaria, é uma vida que é preciso comunicar: trabalho que exige paciência na qual o tempo colabora com Deus, onde cada detalhe conserva a sua importância, porque cada instante pode traduzir ou trair o Amor.

            O que Teresa transmite às suas companheiras é o próprio Jesus, que se torna transparente  por meio dela. Assim, Teresa torna-se para as suas irmãs, graças à sua união com Deus, um exemplo vivo. As noviças sentem que, tão próxima de Deus, Teresa por isso está tão próxima delas.

            Enganamo-nos se pensamos que a tarefa de Teresa fosse uma tarefa pouco exigente (pelo fato de não ocupar o título, e apenas estar incumbida de uma tarefa). Teresa abraça o ofício que lhe foi confiado com todas as suas forças: “De longe parece tudo rosa fazer o bem às almas, fazê-las amar mais a Deus, enfim modelá-las segundo suas visões e seus pensamentos pessoais. De perto é exatamente o contrário, o rosa desapareceu...sente-se que fazer o bem é coisa tão impossível sem o socorro de Deus como fazer brilhar o sol na noite....”

            A experiência dos anos já vividos no Carmelo, e o contato com as almas foram suficientes para faze-la compreender que “é preciso absolutamente esquecer seus gostos, suas concepções pessoais e guiar as almas pelo caminho que Jesus lhes traçou, sem tentar fazê-las andar por seu próprio caminho. Mas isso não é ainda o mais difícil, o que me custa acima de tudo, é observar as faltas, as mais leves imperfeições e travar contra elas uma guerra mortal...” (C 22v-23r).

            Comparando-se ao  “vigia que observa o inimigo da mais alta torrinha da fortaleza”, Teresa combate movida pelo amor que não busca o próprio bem  mas o bem daquelas que lhe foram confiadas: “Os cordeirinhos podem dizer tudo o que quiserem; no fundo sentem que os amo com verdadeiro amor, que nunca imitarei O mercenário que vendo vir o lobo deixa o rebanho e foge.[Jo 10,10-15] Estou pronta a dar a minha vida por eles, mas minha afeição é tão pura que não desejo que a conheçam. Nunca com a graça de Jesus, tentei atrair para mim os seus corações, compreendi que minha missão era conduzi-los a Deus e fazê-los compreender que aqui em baixo, vós éreis, Madre, o Jesus visível que devem amar e respeitar” (C 23r-23v).

            Acompanhando suas noviças, Teresa vai fazendo grandes descobertas, alcançando intuições luminosas: “Disse-vos, Madre querida, que ao instruir as outras tinha aprendido muito. Vi primeiro que todas as almas têm mais ou menos os mesmos combates, mas que são tão diferentes por outro lado que não tenho dificuldade de compreender o que dizia o Padre Pichon: “Há bem mais diferença entre as almas que há entre os rostos”. Por isso é impossível agir com todas da mesma maneira” (C 23v).

            Teresa compreende que no diz respeito à condução das almas não é possível nenhum trabalho em série, não há uma receita única que se aplique a todas; por isso, considera como primeira condição de eficácia a renúncia a todo sistema, e a variedade, a adaptabilidade dos meios de formação (ver S. João da Cruz, Chama n.3):

            “Sente-se que é preciso absolutamente esquecer seus gostos, suas concepções pessoais e guiar as almas pelo caminho que Jesus lhe traçou, sem tentar faze-las andar pelo próprio caminho” (C 22v-23r).

            Sem dispor das riquezas da psicologia moderna, Teresa compreendeu a profunda diversidade dos temperamentos e dos caráteres, a necessidade de adaptar-se a cada uma e de fazer-se verdadeira e eficazmente toda para todas.

            Já no início do primeiro Manuscrito, escrevendo da variedade das almas que embelezam o jardim de Jesus, Teresa escrevera: “ Jesus...pôs diante de meus olhos o livro da natureza e compreendi que todas as flores que Ele criou são belas, que o brilho da rosa e a brancura do Lírio não tiram o perfume da pequena violeta ou a simplicidade arrebatadora da margarida do campo....Compreendi que se todas as florinhas quisessem ser rosas, a natureza perderia seu adorno primaveril, os campos não seriam mais esmaltados de florzinhas..... Assim é no mundo das almas que é o jardim de Jesus. Ele quis criar os grandes santos, que podem ser comparados ao Lírio e às rosas, mas criou também os menores e os que devem contentar-se em ser margaridas ou violetas destinadas a alegrar os olhares de Deus quando os abaixa aos seus pés. A perfeição consiste em fazer a sua vontade, em ser o que Ele quer que sejamos....” ( A 2v).

            Teresa deixa-se conduzir pelo Espírito. Por isso mantém sempre um caráter vivo e espontâneo. Teresa improvisa; como o próprio Deus, para cada alma, ela cria. Não ama a rigidez dos planos, as “contas”, as “práticas”, não se limita senão pela caridade, e não teme dizer a Celina: “Sou obrigada a ter um tercinho para os sacrifícios. Eu o fiz por caridade para com uma de minhas irmãs. Deixei-me prender pelas redes que não me agradam em nada.”

            Esforça-se, portanto, em adaptar-se a todas as noviças, pelo fato de que cada uma é para ela uma alma insubstituível, objeto de um amor particular da parte de Jesus.

            Teresa tem consciência do fim para o qual guia as almas, mas sabe também como agir com cada uma para conduzi-la até este ponto. Leva as noviças a interrogar, escutar, e seguir praticamente o Espírito Santo. Quer ensinar-lhes a perceber os desejos de Deus no momento presente para ser-lhes fiéis, e a sua direção torna-se assim concreta, pratica e precisa.

            Não admite singularidades, complicações, nem delicadezas, ou seja, nada de vago. A simplicidade, a verdade: eis a atitude profunda que quer para todas, também se traduzirá de modo diverso para cada uma.

            Entre muitos recursos que poderia dispor-se para desempenhar a missão que lhe fora confiada, Teresa confessa: “Ah! É a oração, é o sacrifício que fazem a minha força, serão as armas invencíveis que Jesus me deu, podem bem mais que as palavras tocar as almas, fiz muitas vezes a experiência disso” (C 24v).

            Retornando ao que foi dito no início, Teresa “aventura-se” na missão que lhe foi confiada, apoiada no Senhor; apoiada na oração. Ela faz a experiência da força da oração: “Como é pois grande o poder da Oração! dir-se-ia uma rainha que tem a cada instante livre acesso junto do rei e pode obter tudo o que pode. Não é necessário para ser atendida ler num livro uma bela fórmula composta para a circunstância; se fosse assim....ai de mim! como haveria de lamentar!...faço como as crianças que não sabem ler, digo simplesmente a Deus o que quero lhe dizer, sem fazer belas frases, e sempre ele me compreende......Para mim a oração é um impulso do coração, é um simples olhar lançado para o Céu, é um grito de gratidão e de amor no seio da provação como no seio da alegria; enfim é alguma coisa de grande, de sobre natural, que me dilata a alma e me une a Jesus” (C 25r).

Teresa é uma orante por excelência. Ela vive da oração. Fiel discípula de Santa Teresa de Ávila e de São João da Cruz, os Pais e Doutores do Carmelo, Teresa apoia-se sempre na oração. Oração de criança, feita na simplicidade:

“Ás vezes quando meu espírito está numa tão grande secura que me é impossível tirar daí um pensamento para unir-me a Deus, recito muito lentamente um “Pai nosso” e depois a saudação angélica; então essas orações me arrebatam, elas alimentam minha alma bem mais que se as tivesse recitado precipitadamente uma centena de vezes....” (C 25v).

Uma oração prática que revela a Deus os seus dramas e inquietações, suas necessidades e anseios. Falando da sua intimidade com a Santíssima Virgem, ela declara: “Quantas vezes ao falar às noviças, aconteceu-me de invoca-la e sentir os benefícios de sua maternal proteção!....” (C 26r).

Confidência, fortaleza e alegria: três disposições que Teresa julga necessárias para a formação das almas. Três elementos psicológicos que parece não tenham entre eles senão um laço sutil, mas observando-os seriamente aparecem complementares. Todos os três contribuem para criar um idêntico e único clima de abertura. Uma alma confidente é um alma que se abre para uma outra e se oferece à sua influência sobrenatural. Uma alma viril ao invés de dobrar-se sobre si mesma, esquece-se e se entrega ao amor. A alegria é o sinal e o meio de tal desapego. Nasce do ser no mesmo momento que não pensa mais em si, é a felicidade de um coração invadido pelo amor.