Dom Milton Kenan Júnior, Bispo diocesano de Barretos/SP.

  

            Algumas vezes Teresa declara o quanto as pessoas se equivocam a seu respeito: a começar sobre as relações de Madre Maria do Gonzaga com ela: “Muitas irmãs pensam que vós me mimastes, que desde minha entrada na arca sagrada, de vós só recebi carícias e cumprimentos, no entanto não é assim; vereis, Madre, no caderno que contém minhas lembranças da infância, o que penso da educação forte e materna que recebi de vós.” (C, 1v). Falando da sua provação de fé, ela também afirma: “Madre bem-amada, eu talvez pareça exagerar minha provação, de fato se julgardes segundo os sentimentos que exprimo nas pequenas poesias que compus neste ano, devo parecer-vos uma alma cheia de consolações e para a qual o véu da fé está quase rasgado, e no entanto........não é mais um véu para mim, é um muro que se eleva até os céus e cobre o firmamento estrelado...” (C, 7v).

            Teresa não vive de aparências, por isso, não teme em descrever a provação da fé que sofre desde a Páscoa do último ano (1896). Se até então gozava “de uma fé tão viva, tão clara, que o pensamento do Céu era toda a minha felicidade, eu não podia acreditar que houvesse ímpios que não tivessem a fé” (C, 5v).

            Nesta mesma página Teresa fala declara que o pensamento do Céu tornou-se para ela um “assunto de combate e tormento.....”; diz que não se trata de uma realidade passageira: “Essa provação não devia durar alguns dias, algumas semanas, devia estender-se até a hora marcada por Deus e... essa hora ainda não chegou.....” e, diz ainda que se trata de algo que infelizmente ela não pode exprimir o que de fato ela sente.

            Como teóloga, Teresa serve-se da parábola da pátria luminosa, para interpretar a sua saga dolorosa (C 5v-6r); e do desejo de permanecer na escuridão até o fim, desde que aqueles que “não são iluminados pela chama luminosa da Fé o vejam luzir enfim...”.

            A provação da fé é dolorosa, a ponto de Teresa dizer que “de repente os nevoeiros que me circundam se tornam mais espessos, penetram na minha alma e a envolvem de tal maneira que não me é mais possível encontrar nela a imagem tão doce da minha Pátria, tudo desapareceu! (C, 6v).

            O relato de Teresa assemelha-se aos textos dos filósofos da negação de Deus, os profetas da dúvida, do final dos séculos XIX e XX: “Quando quero repousar meu coração fatigado das trevas que me ceram pela lembrança do país luminoso pelo qual aspiro, meu tormento dobra, parece-me que as trevas emprestando a voz os pecadores me dizem zombando de mim: - “Sonhas a luz, uma pátria embalsamada pelos mais suaves perfumes, sonhas a posse eterna do Criador de todas essas maravilhas, crês sair um dia no nevoeiro que te cerca, avança, alegra-te com a morte que te dará, não o que esperas, mas uma noite mais profunda ainda, a noite do nada” (C, 6v).

            Há uma primeira anotação que não pode passar despercebida. Teresa referindo-se à sua vida diz: “Gozava então de uma fé tão viva, tão clara, que o pensamento do Céu era toda a minha felicidade, eu não podia acreditar que houvesse ímpios, que não tivessem a fé. Eu acreditava que falavam contra seu pensamento ao negar a existência do Céu, o belo Céu onde Deus mesmo quereria ser a sua recompensa”. (C, 5v)

            Teresa é uma mulher de fé, que vive da fé. Ainda pequena, deliciava-se refletindo sobre o poder de Deus, com o pensamento do céu, com a prática dos pequenos sacrifícios. Suas orações, suas visitas ao Santíssimo Sacramento e a luta que enfrentou para entrar no Carmelo atestam o quanto a fé lhe inundava a alma. Vivia cada momento num profundo espírito de fé.

            A fé de Teresa é uma fé forte e determinada (que desabrocha em esperança e confiança para o futuro próprio e dos demais, não é uma fé apenas nocional, intelectual, nas verdades, no conteúdo, como tinha insistido o Concílio Vaticano I contemporáneo dela= 1870 ao enfrentar-se com os ateísmo e racionalismo da época). Comprovam o caso de Pranzini e a batalha que enfrentou para entrar ao Carmelo com os seus poucos quinze anos. Referindo-se à Pranzini, ela diz que “creria, mesmo se ele não se confessasse e não desse nenhum sinal de arrependimento” (A, 46r). E, diante das recusas repetidas ao seu desejo de poder ultrapassar os umbrais do Carmelo, Teresa diz que nada “abalava a minha fé” (A, 67v).

            Grande parte de sua vida, Teresa saboreia a felicidade que dá a fé. Houve momentos em que sentia que havia tocado a felicidade do céu, onde não  há mais nem esperança, nem fé (cf. A, 48r).

            Pe. Maria Eugênio, na sua obra “Teu  Amor cresceu comigo”, interpreta a noite de fé de Teresa como resposta à sua Oferta ao Amor Misericordioso: “Tal provação contém os transbordamentos sensíveis do amor, mas tem como efeito principal o de fazê-la participar no drama do Amor divino na terra, em sua luta dolorosa contra o pecado. É o drama interior do Getsêmani e do Calvário, uma espécie de corpo a corpo entre o amor e o ódio-pecado. Compreendemos que o olhar de Teresa se tenha fixado na face de  Cristo Jesus na sua paixão, que esta Santa Face seja sua “única Pátria (seu) Reino de amor, o astro que dirige (seus) passos”. Teresa está feliz por comer o pão da dor em favor dos pecadores com Jesus sofredor que de agora em diante não quer mais deixar até partilhar de sua morte nas trevas do Calvário. Tal identificação com Jesus crucificado será normalmente seguida da participação no triunfo de sua ressurreição. Este triunfo já começou. A Cruz é um trono. Na hora em que a prova começa, como vimos, o corpo da doutrina está constituído, sua missão se confirma.” (Pe. M. Eugenio, Teu amor cresceu comigo, p. 100)

            No entardecer da sua existência, Teresa avança na penumbra da fé. A alegria e a felicidade sensível da fé desapareceram. Ela caminha no túnel escuro da fé. Neste período, ela escreve que “creio ter feito mais atos de fé desde um ano que durante toda a minha vida.” Quanto mais era tentada, mais ela professava a sua fé” C, 7r; CA 6.8.1).

            Aconselhada pelo Pe. Domin, ela escreve o Credo com o seu próprio sangue e leva consigo dia e noite a profissão da fé da Igreja.

            A fé de Teresa é pura, límpida, desinteressada. Como seu amor, ela crê, porque deve crer, porque quer crer (“je chante ce que je veux croire”), porque o amor a leva à fé, como a fé a levou ao amor.

            Mesmo sem nenhum sentimento de fé, Teresa insiste em professar a fé, usa da fé em todas as circunstâncias. Para ela, a fé é remédio, é força e luz.  Para vencer as agruras da doença ela serve-se do alento da fé: “Como é fácil se desencorajar, quando se está doente! Oh! Como sinto que me desencorajaria se não tivesse fé!” (CA 4.8.4).

            Diante das maiores tentações, como o suicídio, a fé é, sem duvida, o grande remédio e a grande força (CA 22.9.6).

            Refletindo nas palavras de Teresa, poderíamos dizer que três elementos se destacam; e, por sua vez, podem servir de ajuda para nossa caminhada de fé:

Um primeiro elemento é a descoberta e a importância que ela dá às obras que nascem da fé: “Ah! Que jesus me perdoe se O afligi, mas Ele sabe que embora não tenha nenhum gozo da Fé, pelo menos procuro fazer as obras.” – Teresa não fica ensimesmada, não se fecha na sua dor; ao contrário, serve-se de um recurso para vencer a si mesma e poder perseverar no seu caminho de confiança e abandono. E o recurso que se serve é o das obras da fé. Se lhe falta o sentimento, não lhe faltam as obras da fé. Mais adiante, será incrível ler o que ela escreve a respeito da caridade, das manifestações do amor verdadeiro às suas irmãs, justamente quando lhe faltava por completo o sentimento da fé (a caridade não passa pela noite, pois permanece e é a maior cf. 1 Cor 13, não tem as imperfeições da fé: conhecimento parcial, sem a visão, ou da esperança, que é não posse, a caridade já une com Deus, é a mesma na terra como no céu e pode crescer até o infinito cf Summa de santo Tomás IIaIIae q 23 sq ).

Teresa é uma mulher prática, que não se detém nos detalhes, não perde de vista o que é essencial na vida do cristão: o sentimento ou as obras? Teresa diz que o mais importante são as obras. Pratica-las sem o sentimento da fé, permite que se alcance mais méritos aos olhos de Deus; tornando assim a fé mais valiosa.

São Pedro na sua Carta referindo-se à provação da fé, diz: “Pela fé, o poder de Deus vos guarda para uma salvação disposta a revelar-se no ultimo dia. Por isso estais alegres, embora por pouco tempo tenhais de suportar diversas provas. Se o ouro, que perece, é aquilatado no fogo, vossa fé, que é mais preciosa, será aquilatada para receber louvor, honra e glória, quando Jesus Cristo se revelar. Não o vistes, e o amais; sem vê-lo, credes nele e vos alegrais com alegria indizível e gloriosa, pois recebereis como termo de vossa fé, a salvação pessoal.” (1Pd 1, 5-9)

A fé de Teresa aquilatada, como o ouro no cadinho, mostra o seu valor pelas suas obras. Deixando-se purificar por Deus, Teresa manifesta o valor da sua fé, pela sua perseverança na prática das boas obras. Embora para ela o céu tenha se tornado uma quimera, e Jesus uma presença aparentemente distante, ela O ama, crê nele, mesmo sem vê-lo e aguarda o premio da sua perseverança, ou seja, a salvação pessoal.

Um segundo elemento que se destaca dos escritos de Teresa  são os “atos de fé”: “Creio ter feito mais atos de fé desde um ano que durante toda a minha vida.”  Teresa sabe que o fogo se mantém com os gravetos que lançamos nele. Pequenas súplicas, invocações breves e espontâneas, são capazes de alimentar o amor e a fé. Neste período vive disso, de pequenas orações, que brotam do seu coração perseverante. Teresa sabe que aparentemente possam parecer poucas coisas, mas são estes pequenos nadas que não permitem que a fé se esfrie de vez.

Há uma carta de Teresa à Celina, no período que era postulante, que pode nos ajudar a compreender como é valioso recorrer a pequenos recursos, quando se sente fraco e impotente: “Que graça quando de manhã nos sentimos sem nenhuma coragem, sem nenhuma força para praticar a virtude; e, este, então, o momento de pôr o machado à raiz da árvore. Ao invés de perder o próprio tempo recolhendo palhinhas, extraímos diamantes. Que lucro no final do dia” É verdade que, algumas vezes, nos descuidamos por alguns momentos de ajuntar nossos tesouros. É o momento difícil; sente-se a tentação de largar tudo, mas num  ato de amor mesmo não sentido, tudo fica reparado e mais que reparado. Jesus sorri, ajuda-nos sem o dar a perceber, e as lágrimas que os maus lhe fazem chorar são enxugadas pelo nosso pobre e fraco amor. O amor pode tudo, as coisas mais impossíveis não lhe parecem difíceis, Jesus não olha tanto para a grandeza das ações, nem mesmo para a dificuldade delas, como para o amor com que estes atos são feitos.” (CT 65)

Já bem próxima dos anos da provação da fé, numa outra carta dirigida ainda à Celina, Teresa serve-se, então, da imagem da palha capaz de alimentar o fogo do amor [o que perfeitamente pode se aplicar á fé]: “Santa Teresa diz que é preciso alimentar o amor. A lenha não se encontra ao nosso alcance quando nos encontramos nas trevas, na secura, mas não estaremos obrigadas a jogar aí ao menos umas palhinhas? Jesus é por demais poderoso para conservar sozinho o fogo, no entanto, fica contente por nos ver colocar aí um pouco de alimento. É uma delicadeza que o deixa feliz. E então, ele lança no fogo muita lenha. Nós não o vemos, mas sentimos a força e o calor do amor. Tenho feito a experiência quando não sinto nada, quando sou INCAPAZ de rezar, de praticar a virtude...É então o momento de procurar as pequenas ocasiões, os nadas que causam prazer, mais prazer a Jesus do que o império do mundo ou o martírio generosamente sofrido. Por exemplo: um sorriso, uma palavra amável quando eu teria vontade de não dizer nada ou de me mostrar aborrecida etc. etc. [...] Não é para fazer minha coroa, para adquirir méritos; é a fim de dar prazer a Jesus! Quando não tenho ocasiões, quero ao menos dizer-lhe muitas vezes que o amo. Isto não é difícil e conserva o fogo. Mesmo quando este fogo de amor me parecesse apagado, gostaria de jogar nele alguma coisa, e Jesus saberia, então muito bem reacende-lo. Celina, tenho medo de não ter dito o que era necessário. Talvez irás pensar que eu sempre faço aquilo que digo...Oh!!!Não! Não sou sempre fiel, mas nunca desanimo. Abandono-me nos braços de Jesus. A gotinha de orvalho afunda mais para dentro do cálice da Flor dos campos e aí encontra tudo o que perdeu e ainda muito mais.” (CT 143)

Há, enfim, um terceiro elemento que se destaca das palavras de Teresa: “A cada nova ocasião de combate, quando meus inimigos vêm provocar-me, comporto-me bravamente; sabendo que é covardia bater-se em duelo, viro as costas aos meus adversários sem me dignar de olhá-los na cara, mas corro para meu Jesus, digo-lhe estar pronta a derramar até a ultima gota de meu sangue, para confessar que há um Céu. Eu lhe digo que estou feliz por não gozar desse belo Céu na terra a fim de que Ele o abra pela eternidade aos pobres incrédulos. Por isso apesar dessa provação que me tira todo gozo, posso no entanto clamar: - “Senhor, vós me cumulais de Alegria por Tudo o que fazeis. (Sl. XCI). Pois há alegria maior que a de sofrer por vosso amor?...” (C, 7r).

A intrépida Teresa manifesta, enfim, o segredo que transforma todo o seu tormento e motivo de alegria e de paz. Teresa na provação da fé, “corre para o meu Jesus”. 

Na Carta aos Hebreus encontramos onde o autor fala da vida cristã utilizando-se de uma metáfora esportiva, onde é preciso despojar-se de cargas e desfazer-se de impedimentos para “correr a corrida”, é preciso armar-se de “constância” para chegar à meta, como fez Jesus: “Nós, portanto...corramos com constância a corrida que nos espera, com os olhos fixo naquele que iniciou e realizou a fé, em Jesus, o qual, pela alegria que lhe foi proposta, sofreu a cruz, desprezou a humilhação e sentou-se à direita do trono de Deus. Refleti sobre aquele que suportou tal oposição dos pecadores, e não sucumbireis ao desânimo. Ainda não resististes até o sangue em vossa luta contra o pecado” (Hb 12, 1b-4).

Teresa na sua corrida, não perde de vista Jesus! É Nele que ela tem o seu olhar, é Ele que atrai a sua atenção e fortalece o seu ímpeto; é Ele que lhe sustenta em meios as mais dolorosas provações. E, como Ele, ela está disposta, a “derramar até a ultima gota de meu sangue, para confessar que há um Céu”; dizendo que está  “feliz por não gozar desse belo Céu na terra a fim de que Ele o abra pela eternidade aos pobres incrédulos”.

Na maturidade da fé, Teresa não pensa em si, mas ao contrário, mas mantem vivo o ideal do martírio para provar que o Céu não é uma ilusão. Aceita a privação de todo sentimento esperando que Ele abra o céu para os pobres incrédulos.

Teresa é a mulher que não reserva nada para si, ao contrário, entrega-se por inteiro, mesmo na mais profunda escuridão da fé.

Numa célebre carta dirigida ainda a Celina, Teresa serve-se da imagem dos acionistas para falar da sua ânsia de amar, e de dar-se inteiramente: “O mérito não consiste nem em fazer, nem em dar muito, mas antes em receber, em amar muito...Diz-se que é maior felicidade dar do que receber, e é verdade. Mas, quando  Jesus quer reservar para si a doçura de dar, não seria delicado recusar. Deixemo-lo tomar e dar tudo o que quiser; a perfeição consiste em fazer a sua vontade, e a alma que se entrega inteiramente a ele é chamada pelo próprio Jesus de “sua mãe, sua irmã” e toda a sua família. E em outro lugar: “Se alguém me ama, guardará minha palavra (isto é fará minha vontade) e meu Pai o amará, e viremos a ele e nele faremos nossa morada”. Oh, Celina! Como é fácil agradar a Jesus, arrebatar-lhe o coração! Basta amar sem olhar para si, sem examinar por demais os próprios defeitos... Tua Teresa, neste momento, não se encontra nas alturas, mas Jesus lhe ensina a ‘tirar proveito de tudo, do bem e do mal que encontra em si”. Ensina-lhe a jogar no banco do amor, ou melhor, ele joga por ela sem lhe dizer como se faz, pois isso é assunto dele e não de Teresa. O que lhe cabe fazer é abandonar-se, entregar-se sem nada reservar para si, nem sequer a alegria de saber quanto lhe rende o banco. Mas, afinal, ela não é o filho prodigo. Não vale a pena que Jesus lhe faça um festim, “visto que está sempre com ele”. “ (CT 142)